sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O Escritor & o Psicólogo

– Eu a amo.

Ele analisava. Pose típica de psicólogo. Mão no queixo. Pernas cruzadas. Óculos abaixo da posição correta. Fala pausada.

– Então por que tu não segues em frente?

Uma provocação. Era assim que ele trabalhava. E eu sabia. Percebia claramente a provocação e seus objetivos. Antecipava a sua análise.

– Pra mim o sexo e o amor sempre foram duas coisas quase opostas, antagônicas. É assustador ver a possibilidade de conciliá-los na mesma mulher.

Era verdade. Eu tinha medo. O sexo vazio era seguro e fácil. Eu o dominava. Eu as dominava. Não tinha nada a temer. Quanto ao amor, eu já havia desistido dele há tanto tempo que nem lembrava mais. Tanto que, quando eu a amei, não soube se já havia sentido aquilo antes, algum dia. Parecia inédito pra mim.

– Mas não é justamente isso que tu procuras? Algo novo? Algo diferente? Algo a mais?

Era. Creio que era. Mas eu tinha medo. Medo do amor. As minhas recordações – remotas – sobre o amor eram de destruição e mágoa. Tragédia. Desesperança. Desilusão. O amor nunca me trouxe nada de bom. E ainda havia aquela certeza, uma premonição absoluta, de que, no momento em que eu me entregasse, ela me abandonaria.

– É. Acho que eu estou em um momento de reconstrução interna. E ela é uma peça chave para que esta reconstrução aconteça.

Mas eu não conseguia vê-la como um objeto – como eu vira todas as outras. Eu a amava – e essa certeza era assustadora.

– Então o que tu tá esperando?! Vai lá, fica com ela! Transa com ela! Te permite amá-la!

Sim, eu queria. Aliás, era o que eu mais queria. Mas não era tão fácil. Eu tinha medo. Eu a conhecia muito bem. Três anos de convivência. Nossa relação era única. Todo aquele desejo contido. Aqueles sorrisos. Aquelas ironias. Aqueles toques sutis. Todo aquele amor desvairado represado por barreiras fracas demais durante todos estes anos. As barreiras se romperam. Não há como manter o controle. E não há como eu explicar isso para ele. Nem para ninguém mais. Apenas eu & ela somos capazes de compreender isso.

– Eu a amo. Sempre a amei. À minha maneira. Creio que a atitude dela com relação a mim é semelhante. Acontece que nós nos conhecemos bem demais e tememos um ao outro. Somos inconstantes...

– Mas o amor de vocês não é constante? Não durou três anos?

(Silêncio)

– O meu sim.

Por mais que eu respondesse por ela, não poderia ter certeza. Ela nunca me deu certeza nenhuma. Ela sempre foi uma incógnita na minha vida.

(Silêncio)

– Sabe, ela me disse que sabe que eu vou estar no casamento dela – ela quer casar –, mas que também sabe que eu não serei o noivo.

– E?

– Não sei o que pensar disso.

Mentira. Eu sabia bem o que pensar; o que sentir. Machucou-me. Eu gostaria de ser o noivo. Na verdade, eu nunca pensei realmente se gostaria de casar ou não; mas sei que não vou agüentar essa vida de escritor degenerado pra sempre. Já comecei alguns processos de reconstrução interna. Acho que sim. Que eu gostaria de casar-me; ter um casal de filhos... talvez com ela.

(Silêncio)

– Tu gostarias de ser o noivo?

– Acho que sim.

– E por que tu não deixas ela saber disso.

– Por que no momento em que ela souber, ela vai me deixar.

Era verdade. Pelo menos era no que eu acreditava.

– E se ela não te deixar?

– Não sei.

(Silêncio)

– O que tu esperas dela?

– Amor.

– Como?

– O quê?

– De que forma? Como tu queres que ela demonstre esse amor? Como tu queres que esse amor se realize?

Eu não sabia.

– Talvez em muitas noites de sexo selvagem. Talvez em um casamento com um casal de filhos. Talvez até mesmo em ambos, na simbiose perfeita – nós, que tão ambíguos somos.

(Silêncio)

– E por que tu não dizes tudo isso pra ela?

– Porque no momento em que ela souber, eu irei perdê-la.

Era verdade. Eu sabia. Tinha certeza.

– Tu estás te bloqueando. Assim tu nunca vais te permitir viveres nada. Tu estás estagnado.

Eu sabia. Mas eu tinha medo. Muito medo. Depois de muitos anos ela era uma possibilidade de amor, e eu percebia que a perderia antes mesmo desse amor se concretizar. Ela era minha. Sempre fora. Mas na verdade não seria nunca.

Eu estava extasiado por amá-la; mas aniquilado pela certeza da tragédia.

– Não importa... nunca importou...

Mentira.

(Silêncio)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A cultura dos incultos

Por que, atualmente, as aulas em universidades baseiam os seus conteúdos no ritmo de aprendizado de alunos que não teriam a menor capacidade de estar dentro de uma universidade? Visando elucidar este problema, o presente texto irá apresentar algumas questões para reflexão.

Inicialmente, devemos propor-nos a investigar as causas deste fenômeno, que cada vez mais atinge as universidades brasileiras. É possível considerar que o problema advém da necessidade das universidades particulares manterem seus alunos. Os altos preços podem ser pagos apenas por uma pequena parcela da população, sendo que, seria financeiramente inviável para as estas universidades perderem alunos por causa da elevação da qualidade e da exigência em nível acadêmico.

Juntamente com estas questões, podem-se incluir as políticas governamentais – que afetam principalmente as universidades públicas. O governo brasileiro precisa mostrar uma evolução no nível de educação da população para os organismos internacionais. Só que está evolução não se dá na qualificação da educação brasileira, e sim no aumento da parcela da população que tem acesso a uma educação formal. Ou seja, as políticas públicas visam quantidade, e não qualidade. Seu interesse é apenas em termos de números e percentuais.

Tendo em vista estas duas questões básicas – que podem ser desenvolvidas em inúmeras outras –, não é difícil compreender como o Brasil despeja quantidades absurdas de profissionais mal-preparados no mercado de trabalho todos os anos. A política dos números nas instituições públicas, e a política do dinheiro nas instituições privadas, estão carcomendo a educação brasileira de dentro para fora. O resultado disso poderá ser observado daqui a alguns anos, num cenário em que o Brasil terá grande parcela de sua população com uma “boa” escolarização em termos oficiais, mas que ser revelará como o país da educação oca, da ignorância diplomada.

O Brasil é o país das filas

Pode-se dizer que o Brasil é o país das filas, e talvez o maior exemplo disso seja a fila do SUS. É por isso que hoje ninguém se surpreende quando uma mulher dá a luz nesta fila, socorrida por passante e ignorada por médicos e enfermeiros.

O hospital ali, poucos metros a sua frente, torna-se uma miragem inalcançável na medida em que o sangue vai escorrendo por entre suas pernas. Seu filho vem ao mundo como uma prova da caridade humana, dependendo da boa vontade de passantes despreparados para nascer. Como um Jesus Cristo da pós-modernidade, ele grita alto em alguma rua suja e fétida deste imenso país, mas logo é sufocado pela poluição e pelas buzinas de algum trânsito caótico.

Depois do parto já realizado, provavelmente a fila do SUS humanizou-se um pouco – não por atitude dos médicos, sempre encastelados nos seus uniformes brancos de semi-deuses, mas através da atitude das mesmas pessoas corajosas e de boa vontade que ajudaram uma desconhecida a parir no meio da rua.

O Brasil é o país das filas, e a fila do SUS é provavelmente o melhor exemplo disso. Mas quando uma mulher dá a luz em uma calçada suja, no meio dessa fila, nós percebemos o quão lindo e horrível é o Brasil em que vivemos.

Dia cotidiano

Na Porto Alegre suja e poluída do século XXI é possível passar por mendigos bêbados, enxames de grevistas, assaltantes que não temem a luz do dia e trapos humanos com cachimbos de crack. Pode-se ver tudo isso nos poucos metros que um ônibus velho consegue percorrer no trânsito caótico desta cidade em um dia de chuva. As pichações se confundem com o cheiro de esgoto e com a multidão de desconhecidos, que parecem sem rosto sob a garoa fina.

É por este contexto caótico que um estudante tem que passar todos os dias ao se dirigir do centro à PUCRS. Uma realidade de misérias humana variadas passa lenta pela janela, enquanto no meio do congestionamento eu ouço Gardel no mp4 e penso no café com baunilha que me espera na PUCRS.

Confesso, nunca gostei de escrever crônicas. Sempre fui criticado pela minha falta de consciência social. A miséria nunca me comoveu. Mas o que me incomoda neste trajeto diário é a feiúra. Como escritor, sempre me guiei pelo instinto de beleza; sempre procurei ver a arte no cotidiano. Mas isso parece impossível em dias de chuva, preso no trânsito caótico, em uma cidade suja, podendo ver apenas a miséria pela janela.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Chuva

Era uma manhã cinzenta. Ele se remexia na cama, embaixo de três pesados edredons coloridos que o sufocavam. A televisão sem som já não tinha mais serventia, pois o dia já havia clareado. Escutava os pingos de chuva batendo na janela, e a claridade que invada o quarto era cinzenta. As costas doíam-lhe. Não encontrava mais posição para permanecer deitado – há quantas horas já estaria dormindo? Levantou-se e foi até o banheiro. Sempre o mesmo ritual ao acordar. Mijou, lavou as mãos, lavou o rosto, escovou os dentes, olhou-se no espelho. Cara inchada, expressão cansada, olheiras. Não importava o quanto dormisse, parecia estar sempre muito cansado, acabado. Era como se tivesse uma ressaca permanente, mesmo sem beber – uma ressaca de respirar.

Passou margarina em dois cacetinhos de três dias e colocou-os no microondas. Comeu-os rápido, antes que virassem pedra. Passava um pouco das dez da manhã. Sentou-se em frente ao notebook. Orkut, twitter, gmail, blog. Amigos virtuais. Os reais, de carne e osso, estavam longe há séculos. Às vezes, em algum momento de lucidez, perguntava-se se eles realmente existiram.

Detestava a televisão. Ficar como um autômato sentado em frente a um gordo qualquer em um domingo chuvoso. Mas as horas que negava à tv, dava quase inconscientemente ao computador. Um outro tipo de automatismo, mais disfarçado, mais sutil, mais culto, mais bonito. Ninguém poderia criticá-lo por estar em frente ao computador – todos estavam. E as horas se esgotavam.

A chuva, o frio, a conexão ruim da internet esgotavam-no. Não sabia se o dia ia realmente escurecendo. Essas tardes chuvosas pareciam-lhe atemporais. Buscava uma distração ou outra no notebook já velho e com o hd esgotado. Assistia os mesmos filmes pela décima-sétima vez. Colocava um tango dolorido para tocar. Revia velhas fotos. Relia velhos textos. Deparava-se com o inexorável e inesgotável Paciência Spider. A noite já era escura.

Novamente embaixo de três edredons coloridos e pesados. O cheiro forte do seu suor já velho nos lençóis que não eram trocados quase nunca. Tinha uma pequena lâmina, fragmento de gilete quebrada a muito custo no banheiro, apertada entre o polegar e o indicador. Apenas sua cabeça permanecia do lado de fora dos edredons, e agora a televisão sem som cumpria a sua função de espantar a escuridão em tons mórbidos e desbotados de azul.

Ele pensava: solidão solidão e mais solidão há quantos anos essa solidão por que ninguém nunca conseguiu se aproximar de mim por que eu nunca consegui me aproximar de ninguém e de que me vale essa vida vazia desregrada de bebedeiras e transas com mulheres estranhas em bares infectos ninguém se importa comigo de verdade ninguém vai realmente sentir falta se eu morrer vão chorar um pouco no enterro para não ficar feio mas no fundo vão se sentir aliviados talvez os meus avós minha mãe minha irmã realmente sintam o resto não o resto nada eu sou nada para eles ai doeu merda não tenho coordenação pra cortar com a esquerda como escorre rápido nem parece vermelho com essa luz da tv será que vai encharcar os lençóis o colchão os três edredons duvido que tenha sangue para tanto é uma sensação engraçada estranha da uma agonia mas não dói é só sentir o sangue saindo saindo saindo e saber que daqui a pouco não vai restar nenhuma gota sinto saudades da minha irmã gostaria de ter me despedido dela e da minha mãe e dos meus avós meu pai também morreu sem se despedir de mim quinze anos de abandono antes dele morrer desgraçado tô ficando cansado com sono será que isso é morrer não consigo mais pensar direito articular as frases direito na minha cabeça vou dormir um pouco só tirar um cochilo embora eu saiba que não é um cochilo e que eu não vou acordar nunca mais.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Tarde de Agosto

Largou a navalha e olhou-se no espelho. Olheiras fundas; expressão cansada. Restos de espuma no pescoço. Há tempos deixara de ser cuidadoso ao barbear-se. Há tempos deixara de ser cuidadoso em várias coisas.

Entrou no banho. Água quente sobre a pele. Vapor entorpecendo-o. A ducha quente sempre clareava suas idéias; parecia espantar o cansaço – pelo menos por uma meia hora.

Lavou o cabelo duas vezes, perdido, alienado. Não se dava conta da realidade. O vapor brumoso do pequeno box parecia transportá-lo para outro mundo. Não pensava; não sentia. Apenas ficava imerso na umidade quente, turva.

Desligou o chuveiro; vestiu-se; saiu para a rua. A garoa fria; os sons agudos; a poluição suja que não se deixava lavar; as imagens do centro imundo de Porto Alegre. Tudo isso o agrediu de uma forma tão violenta que ele chegou a dar dois passos, de costas, para dentro do prédio. A ilusão do banho havia acabado. Ele engoliu a seco e saiu novamente.

O vento e a garoa fina encharcavam o sobretudo e o chapéu de feltro. O dia era nublado, cinzento; e ele ia todo de negro pelo meio da multidão multicolorida, que o atacava com guarda-chuvas afiados e olhares de reprovação e susto. Realmente, mesmo limpo e – mal – barbeado, sua figura não era das melhores. As olheiras, a expressão cansada. Alguma coisa agressiva e triste naquele olhar. E ele ia indo pelo meio da chuva.

Entrou em um café e sentou-se em uma mesa ao fundo. Largou o chapéu e o sobretudo encharcado sobre uma cadeira. Abriu o casaco. O ambiente abafado do lugar o sufocava. Ela observava-o com curiosidade. Apenas quando acabou de acomodar-se e habituar-se ao lugar, ele olhou-a e disse:

– Oi.

– Oi. – Ela lhe respondeu sorrindo.

Ele sorriu também. Eram cúmplices. Amantes; amigos; tudo. Eram tudo um para o outro – o mundo – e nada mais importava.

Dois capuccinos sem chantilly. Planos para ir ao teatro, ao cinema, à livraria. Uma harmonia cálida com cheiro de café. No fundo, não havia necessidade de palavras entre eles. Já haviam se dito tudo anos atrás. Já apaixonaram-se; amaram-se; odiaram-se. E o que restou? Restaram os dois, em um café no centro de Porto Alegre, em uma tarde cinzenta e chuvosa de agosto.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

episódio ilustrativo sobre a incompreensão

Talvez ela só quisesse a minha ajuda. Talvez essa fosse a sua forma, assim meio torpe, driblando o orgulho, dissimulando, talvez fosse a sua forma de me pedir ajuda. Mas eu não a ajudei. Sequer acreditei nela. Já não acreditava no tipo humano há tempos. Aos meus olhos ela fingia, dissimulava, encenava. E eu não tinha mais paciência para encenações. Abandonei-a à própria sorte. Ignorei-a. O resultado foi trágico. Dramático. Sem todo aquele sangue vermelho, cores de Almodóvar, mas quase com o mesmo efeito. Sedativos variados, um coquetel multicolorido, uma overdose. E um pedido de ajuda silencioso ecoando na memória.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Amor (ou Com Toda A Calma Do Mundo)

Andava. Simplesmente caminhava pela rua, sem rumo e sem destino. Chovia. Incessantemente. Pés encharcados, corpo gelado. Pensamento longe. Tentava compreender. Era uma busca, uma jornada interior. Afundava-se em si mesmo cada vez mais, até que o mundo exterior simplesmente deixasse de existir. Não conseguia chegar a um ponto de raciocínio claro; estava confuso e perdido. E ia indo pelo meio da chuva. Pensava que talvez, possivelmente, pudesse haver um meio, que deveria haver alguma forma de redenção, de purificação. Pensava que talvez ele não fosse tão ruim, não fosse tão mau, que talvez pudesse alcançar o reino dos céus ou uma tarde sossegada ou uma torta de maçã. Tinha de haver um jeito. Finalmente chegou em frente a uma porta. Tocou o interfone; voz de mulher o mandou subir. Ele pensava em torta de maçã quando ela abriu a porta. Cumprimentaram-se. Calorosamente, amorosamente, aquela intimidade gostosa e quente de quem já dormiu muitas noites juntos. Ele sentou-se no sofá tirando tênis e jaqueta molhada, enquanto ela lhe estendia uma toalha dizendo qualquer coisa como você-é-maluco-de-sair-andando-pelo-meio-da-cidade-numa-chuva-dessas-vai-pegar-uma-gripe-você-não-se-cuida-seu-louco. Ele ainda pensava na torta de maçã, tarde sossegada, reino dos céus. Vagamente sorriu. Eles sempre foram cúmplices velados, palavras eram desimportantes. Estavam os dois ali, na mesma sala, e havia uma aura de calor entre eles. Ela lhe entregou uma xícara de chá quente e desatou a falar coisas desordenadas e desimportantes. Você-viu-a-crise-no-senado; que-horror-essa-gripe-suína; tem-visto-a-novela-das-oito; parece-que-a-economia-está-se-recuperando. Ele murmurava baixinho reino dos céus, redenção, inferno, perdido. Nunca fora muito religioso, o reino dos céus que buscava era mais como algo filosófico, uma paz interior, um descanso para sua mente atormentada. Tirou as roupas molhadas, vestiu pijama de pelúcia cor-de-rosa com coelhinho na frente, enrolou-se em um cobertor quente e macio e tomou o chá. Reino dos céus, pensou. Ela parecia haver se acalmado; matado a primeira fome de uma companhia outra, que não fosse ela mesma. Agora olhava-o quieta, com olhos grandes de uma curiosidade calma. Ela compreendia que ele lhe contaria tudo; talvez levasse uma noite inteira, talvez uma semana, mas ele se desvelaria para ela, talvez até chorasse, e ela o consolaria, e então, exaustos, iriam dormir, na mesma cama, calor gostoso entre eles, compreensão mútua, talvez se amassem, mas seria tudo calmo e plácido, porque a época de angústias e ânsias entre eles já passara há muito. Ele continuava pensativo. Mas aos poucos foi falando, meio que para si mesmo, como num monólogo. Sabia que ela estava ali, mas também sabia que não havia nenhuma necessidade de interagir com ela, bastava pensar alto, que ela o ouviria, o compreenderia, o consolaria, e talvez até o amasse, um amor quente, carinhoso, quase como se ama uma criança; ele era a criança que havia se machucado, e ela lhe daria colo, secaria suas lágrimas, diria que está tudo bem e o amaria com um sorriso cálido. Ele estava exausto de tantas buscas, tantas desilusões, tanto horror cotidiano. Ela o observava plácida e terna, como uma deusa que em silencio se comove com as angústias mortais. Tentava aliviar o peso dele apenas com sua presença. E ele contava contava contava, deitado no colo dela, adormecido, continuava contando em sonhos, contava-lhe seus pesadelos, e ela se compadecia dele. Tinha impressão que ele continuaria a se revelar para ela mesmo depois da morte. Quando ele se calou ela ajudou-o a ir para a cama, sussurros leves, vem-levanta-vamos-pra-cama-tu-vai-ficar-todo-torto-dormindo-nesse-sofá. Deitaram-se, como sempre, aquela cama já tão familiar aos dois, os corpos um do outro já tão familiares, os cheiros, os gostos, os sons. Suas almas já estavam tão fundidas que seria impossível separá-las. Por fim, dormiram, como tantas vezes já haviam dormido, como tantas vezes ainda haveria de dormir. Com toda a calma do mundo.

sábado, 22 de agosto de 2009

Inevitabilidade

Creio que somos uma inevitabilidade, eu e ela. I-ne-vi-ta-bi-li-da-de. Uma hora ou outra, vamos nos encontrar pelo meio desses nossos caminhos inventados. Encontrar-nos, eu digo, no sentido mais filosófico da coisa – como sempre foi conosco. Palavras distantes, olhos azuis, gatilhos imaginários. E uma infinidade de coisas sem explicação que não fariam e nunca farão sentido para qualquer pessoa outra. É como um mundo paralelo, só nosso, que já esteve à beira do apocalipse muitas vezes. Mas de catarse em catarse, eu percebi que somos meio interdependentes. À nossa maneira – como sempre, tão estranha. As distâncias, os conflitos, tudo o que aparentemente nos afasta um do outro, forma uma espécie de equilíbrio perfeito. Num conceito quase divino de perfeição – tão próprio para nós, que sempre fomos semi-deuses.

Entenda, é complicado tentar descrever, ou mesmo compreender essa nossa relação. É como entrar em um labirinto sem fim. Cada caminho nos leva a um lugar diferente, e os caminhos são infinitos – embora todos acabem em becos sem saída. O que eu tento fazer aqui é um exercício de auto-conhecimento, de conhecimento dela – nós, que sempre fomos tão difusos, que perdemos os contornos fixos quando estamos um perto do outro. Ela, sempre minha inspiração, meu ideal de divindade neste mundo podre, meu duplo, sol, eu que sempre estive perdido na escuridão por vontade própria.

Acho que isso que vivemos agora é apenas mais uma fase, mais um processo, mais um caminho no labirinto. Repito: nós somos uma inevitabilidade. Quer gostemos disso ou não. Nossas almas estão ligadas a nível inconsciente, e esse ligação não será quebrada por nossa vontade ou capricho. I-ne-vi-ta-bi-li-da-de. Nós, que sempre nos orgulhamos de sermos donos dos nossos destinos, aqui nos tornamos escravos dos mesmos. Eu, particularmente, não acho tão ruim. Eu não tenho nada a perder. Mas para ela é uma escolha. Talvez, uma escolha sem escolha.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Dia de Chuva

Visitei as ruínas do antigo colégio hoje. O que restou da minha infância, da minha adolescência. O dia combinava perfeitamente com a melancolia exigida para tal ato. Dia cinza, nublado, chuvoso. Eu ia indo pelo meio da chuva, sem guarda-chuva nem capa, apenas uma camisa de flanela tentando me proteger da água gelada que caía do céu. Ato masoquista, muitos diriam, mas eu continuava indo, não me importava, queria aquela dor pra mim. Eu necessitava das lembranças, e sabia que a dor invariavelmente viria junto. A dor da perda. Da perda daquele tempo, daquelas emoções, daquela pessoa que eu fui um dia. A perda de tudo me doía no meio da chuva, e eu ainda nem havia chegado.

Ao lado do velho colégio havia uma catedral. Neste sábado chuvoso e frio de inverno, suas sólidas portas de madeira nobre – importadas da Alemanha – encontravam-se cerradas. Eu olhava fixo para as portas cerradas, parado no meio da chuva. Era como se minha vida fosse uma eterna chuva, e todas as portas estivessem cerradas. Todas elas feitas de madeira nobre, escura e muito dura, e minhas mãos ensangüentadas, ossos quebrados de tanto bater em vão.

Adentrei no colégio. Não era mais o mesmo. Aquelas placas de acrílico, aquela pintura nova em cores berrantes, aquelas grades. Nada daquilo fazia parte do colégio da minha infância. Nada daquilo era meu. Eu era um estranho ali, e sentia aquele lugar me expulsando. Um “vá embora” sussurrado pelo vento nos corredores gelados, antes tão familiares, agora tão estranhos. Andei andei andei, andei centenas de quilômetros, andei até o infinito, e não reconheci nada. O meu colégio não existia mais; aquele que ali estava era outro. O choque da realidade deixou-me zonzo. Não sabia o que pensar. Não sabia o que sentir. Fui embora.

De volta à chuva fria, portas cerradas, sangue, ossos, desespero, desamparo. De volta ao nada, ao vazio, à minha vida. E agora com a certeza excruciante de que um dia a minha memória irá se apagar, e os lugares e pessoas que hoje apenas ali existem, enfim morrerão. E eu morrerei com eles.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

dia frio.

Busco combater a minha solidão metropolitana em cafés. Observo as outras pessoas conversando e intimamente desejo ser uma delas. Mas estou sozinho.

Hoje cortaram a minha luz. Esqueci completamente da luz quando fiz a mudança. Eu nunca fui muito bom com estas questões práticas da vida. Sempre alienado – é o que me dizem.

É final de julho e o inverno parece ter atingido o seu máximo esplendor. O frio enregelante castiga a boca e os olhos. O clima paranóico de medo da gripe suína paira no ar. A vida segue.

Pessoas entram e saem do café. Ninguém presta atenção em mim. Mas eu continuo aqui, ansiando desesperado por qualquer contato humano, qualquer um que se compadeça de mim e sente ao meu lado para ouvir minhas histórias. Ou para me contar histórias, eu sempre gostei tanto de ouvi-las – quanto mais fantástica melhor.

Permaneço sozinho no café, esperando um olhar, um sorriso, um abraço – mesmo com a gripe suína. Mas ninguém ouve o meu grito silencioso; ninguém presta atenção no meu desespero.

Considerações de Vila Tamanduá

A chama da vela dança. Chove torrencialmente lá fora. A noite não é tão fria quanto deveria ser nesta época do ano. O espelho me encara na penumbra. Fica difícil escrever. A luz bruxuleante da vela projeta a sombra da minha mão sobre as palavras. Eu lembro de livros e filmes. Lembro de amores. De desamores. Tenho pena de mim mesmo na escuridão. E chove lá fora.

Aqui sempre foi um local muito propício para escrever. O isolamento, a alienação. É como se este lugar me permitisse olhar para a minha vida de fora pra dentro; olhar para mim mesmo de fora pra dentro. Há certas conclusões às quais eu só consigo chegar quando estou aqui, longe do mundo, longe de tudo, longe de todos, longe da minha vida, longe de mim mesmo... E muito mais perto da minha verdadeira literatura.

Um post caótico sobre cupins e sentimentos confusos

Angústia. Não; angústia não. Agonia. Tenho por mim que agonia é a melhor descrição para este tipo de sentimento. Agonia. É algo que impede a vida de seguir o seu curso; é algo que me impede de seguir o meu próprio curso. Agonia. Pura como a loucura.

Sou apenas um homem entediado com minha vida comum. Apenas mais uma vítima da agonia. Apenas mais um. Mas ao contrário de menininhas bulímicas, eu escrevo, vomito no papel. Mas a agonia é a mesma, eu garanto. Aquela mesma esperança vazia de ter tanta coisa bonita pra viver, mesmo tendo a certeza de que isso nunca acontecerá.

O que me restou foram os meus livros; o meu vômito. São tantas culpas de coisas não vividas, de covardias e medos. Tantas angústias e agonias por não conseguir ser quem eu quero ser; e eu quero tanto, preciso desesperadamente deste eu que não vem, que não desenvolve, que não desabrocha. Tento mil e uma artimanhas para enganar a mim mesmo, fingir ser o grande homem que não sou, esquecer esta mediocridade eterna em que estou imerso. Quase sempre funciona. O problema é quando o quase não dá certo, quando não é o suficiente. Dar-se conta da sua própria mediocridade é o pior dos abismos, a pior das torturas – Salieri que o diga (que Hades o tenha).

Pra mim a mediocridade é como cupim. Passei anos envernizando a minha linda superfície amadeirada, formada através dos melhores livros & filmes, com um toque de sândalo para completar. Enquanto isso o meu interior foi ficando cada vez mais carcomido, oco, inutilizado. Infestado de cupins. Até dei nome para alguns – os mais familiares. Há a Tristeza; a Melancolia; a Depressão; o Suicídio; o Caos; a Desesperança; a Ilusão. A Esperança; o Carinho; a Amizade; o Amor. Todos cupins de estimação – alguns gordos e roliços; outros decrépitos e semi-mortos. Mas acho que o principal cupim dentro de mim é a Soberba. A Soberba e a Indiferença são rainhas absolutas dentro do meu interior podre e carcomido. Não há dúvidas. É inegável. Uma hora o verniz vai cair, a pintura vai descascar, e o cupinzeiro inteiro vai ruir, com seus cupins correndo desesperados pelo chão, sendo esmagados um a um por transeuntes indiferentes, até não restar nenhum.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

sobre o amor

Sentir o ar da cidade, sentir a cidade respirando. A cidade é um organismo vivo, que pulsa. Ouvir os sons, o tique-taque do relógio, e eu aqui, observando a cidade de dentro pra fora, de fora pra dentro, escondido por trás do vidro da janela. Observando as pessoas a caminhar, a cidade a pulsar, sem saber ao certo quem sou, o que vai acontecer, o que devo fazer. Sem saber nada, como alguém que se descobre cego de repente e sai tateando, procurando, em meio à escuridão e ao desespero, tomado de perplexidade.

A condição humana é triste. Isso é um fato inegável. Quanto mais eu penso, mais me dou conta disso. O que significa ser humano, além de dor e sofrimento? Amor? Amor é ilusão. Provavelmente a maior das ilusões. Uma ilusão divina, presente dos deuses para aplacar a tristeza de nossas vidas miseráveis. Nós, como seres humanos, somos incapazes de amar. Não amamos nem a nós mesmos. Idolatramo-nos junto com os nossos deuses – geralmente nos idolatramos mais do que aos nossos deuses –, e tudo isso pra quê? Pra nada. No fundo é tudo ilusão, quimera mágica que escorre pelos dedos tal qual areia; assim como o amor. Eterno amor. Impossível amor. Ilusão suprema dos pobres mortais.

Engraçado. Fazia tempo que eu não pensava sobre o amor, que eu não escrevia sobre o amor. A descrença suplantou o amor que havia em mim há muito tempo. E não seria tudo a mesma coisa? A descrença. O amor. Tudo ilusão? Apenas caricaturas de percepções vagas. Apenas tentativas, que nem sempre são tão válidas assim. Tentativas vãs de escapar da dor e do sofrimento que significa ser humano. Sim, pois tal qual o amor, a descrença também é uma tentativa de salvação. Tentativa daqueles que acreditaram demais, e presenciaram toda a maldade e crueldade humana na pele, no sangue, no coração. A minha descrença me salva, me protege, me ilumina até. Torna-me sagrado e especial em meio ao mundo cinzento em que vivemos. Dá-me novas percepções, me permite ir além. A minha descrença é a minha salvação – minha ilusão. Quanto aos outros, que fiquem com o amor – ilusão mais imperfeita e fugidia do que todas as outras. O eterno amor. A elevação sublime da condição humana, o dom dos deuses, que vislumbramos mas nos é negado a cada tentativa vã, a cada pedido desesperado, a cada coração dilacerado. O amor, dom dos deuses, que a nós, humanos e mortais, só faz sofrer.

sobre a descrença & minhas duas mulheres

Às vezes eu me pego pensando “por que eu não consigo me envolver? Por que eu não consigo amar alguém? Por que eu não consigo me apaixonar?” O motivo essencial, creio eu, é a descrença. Muitas decepções ao longo da vida, o coração calejado. Fica difícil acreditar em tudo o que já se perdeu, em todas as ilusões – sejam passadas ou futuras. Mas além da descrença, eu vejo dois motivos secundários, duas razões/situações que me impedem de me envolver – me entregar? – com outra pessoa.

A primeira delas é uma eterna relação mal-resolvida que, entre idas e vindas, já dura lá seus dois anos e pouco. Para mim, seria a relação perfeita, se não fosse por um pequeno detalhe: eu não sou apaixonado por ela. Poderia até dizer que a amo, e isso talvez fosse verdade; mas não sou apaixonado por ela. Temos uma convivência harmônica – o que comigo é quase impossível –, e em alguns momentos ela até ajuda a balancear o meu frágil equilíbrio. Só não há paixão. A relação (quase) perfeita.

A outra razão/situação – não menos importante – é o eterno fantasma da mulher perfeita. Da mulher perfeita pra mim. Fantasma esse que me assombra há, creio eu, uns dois anos e pouco, quase três. Sempre ali, como uma possibilidade, como uma presença, como uma ausência, como poesia. O drama sangrento em cores vivas no meio da minha vida cinza e vazia. Tudo o que eu sonhei pra mim – eu que odeio clichês. O fantasma da mulher perfeita, sempre bailando a uma distância segura. Sempre em meus pensamentos; sempre em meus sentimentos – hoje tão raros.

Não sei exatamente à que conclusão chegar. Não sei o que pensar da minha descrença no amor e destas duas situações paralelas. A única certeza que eu tenho é a de que enquanto estas situações não se resolverem, eu serei incapaz de me apaixonar novamente. E quanto à descrença... bem, a descrença, creio eu, é insolúvel. Ou quase.

Algumas Considerações

Eu gostaria de ter uma história para contar, mas não tenho. Tenho apenas alguns devaneios, alguns delírios; alguns pensamentos sem sentido, alguns sentimentos tresloucados. “Não escrevo mais como antigamente”, eu penso, e aí me dou conta de que já não faço mais muita coisa como antigamente: já não penso como antigamente, já não sinto como antigamente, já não sou como antigamente. Tudo foi ficando cinza e nublado, esse conjunto de coisas difusas que sou eu foi adquirindo aos poucos um ritmo mais lento, mais sóbrio, mais irreal, mais surreal, cada vez mais para dentro e para fora – para dentro de mim mesmo, para fora do mundo; sempre os contrastes, sempre as contradições.

Eu mesmo nunca soube para onde me encaminhava. Sempre tive a sensação de que andava a passos largos para a beira do abismo. Só não sabia de que abismo. São tantos os abismos pelos quais tive de passar; e tantos mais os que pressinto no meu futuro, à minha frente. Eu sempre me jogando de cabeça nos abismos, esta é a imagem que fica.

Talvez o que me incomode seja justamente a falta de abismos. Esse isso-tudo plano, reto, sem perigos, sem mortes, sem nada. Essa falta de abismos vai se tornando para mim, aos poucos, algo insuportável. Como posso viver em uma vida sem abismos? Não posso – e isso em si já é um abismo; a minha salvação.

O que me separou da loucura, o pequeno passo que me separou da loucura durante todos estes anos, foi justamente o fato de eu estar sempre a um passo dela. É uma forma de equilíbrio, vê? Se eu afastar-me um passo mais da loucura, ela inevitavelmente me alcançará. O equilíbrio estará quebrado, o feitiço estará desfeito.

A loucura sempre a um passo, os abismos sempre ao redor, e eu.

sobre o ceticismo

“Como faz pra deixar o ceticismo de lado?” Vi hoje essa pergunta no orkut de uma amiga minha e, para minha surpresa, eu – que sei de tudo – não sabia a resposta. Na verdade, é muito difícil até mesmo saber o que é o ceticismo. Talvez uma doença, talvez um estado de espírito. Mas eu me sinto inclinado a crer que é uma construção. Paciente, diária – uma construção. A cada dia que tu acordas, olhas para o mundo e não vê a beleza que supostamente deveria estar ali, tu te constróis cético. Houve um dia em que acreditaste em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa. No Bicho Papão e na Cuca. Nas fadas e nos duendes. No amor e na amizade. Na paixão e no companheirismo. Por fim, o que restou? O ceticismo. Como uma erva má, ele foi tomando a tua alma, trepadeira infame escalando os teus muros interiores e matando sufocadas todas as flores outras, todos os sentimentos outros, tudo – consumindo, te consumindo. Mas chegará uma hora em que não haverá mais nada a ser consumido, o ceticismo, erva má absoluta dentro de ti, terá então vencido. Solitário, vencedor, absoluto. Não tendo mais nada a sugar, morrerá – talvez junto contigo –, seco e árido, morto, o ceticismo; seca e árida, morta, tu. Terá valido à pena? Terás lutado o suficiente?

“Como faz pra deixar o ceticismo de lado?” Se eu soubesse, viveria.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ensaio sobre a loucura

A cafeteira vomitava lenta as gotas de café. A noite se iniciava como tantas outras. O barulho da cafeteira, o cheiro do café, um livro no colo e a solidão. Eu sentia algo se formando. O que seria? Pensamentos vagos? Delírios, saudades, ausências? De tudo um pouco, creio eu. Tantas saudades, tantas ausências... tantos delírios. A loucura tomando forma dentro de mim, no meio do vazio e da solidão, construindo a si própria de matéria escura, de mim, do que há dentro de mim e é indizível, incompreensível até para mim mesmo. A loucura crescendo, se alimentando das saudades e das ausências, e criando os delírios, as ilusões. E eu que chegara a pensar que o tempo das ilusões havia passado. Derradeiro engano. Não passa, nunca. Vem e vai, em ondas, o tempo das ilusões. Não sei dizer se mais dão esperança ou mais fazem sofrer, as ilusões – e não seria a mesma coisa? Tão complicado tentar compreender a si mesmo. Compreender os movimentos difusos do caos que se desenrola no interior da mente, do coração, da alma – e não seria tudo a mesma coisa? Tantas perguntas sem respostas. Rapsódias sem sentido. Um teatro encenado por mim para mim mesmo. Delírios. Ilusões.

O que acontece? O que acontece de verdade? Na noite fria muitas dúvidas me assolam. O café auxilia no combate contra o sono que me ataca violento. Cansaço incrustado nos ossos. De desilusões, o cansaço. Provavelmente. Devia ter febre. Gostaria de ter febre. Talvez os delírios fizessem sentido na febre. Mas estou são. Não, estou saudável, não são; nunca são. A sanidade me abandonou há... na verdade eu não me lembro de algum dia ter me orientado pela sanidade. Será o meu fim? Ter me dado conta da minha loucura e morrer então, alucinado e demente, ciente de que nada me faz sentido. Talvez. Não, não posso morrer ainda. Não me sinto pronto para a morte, embora pressinta que ela me espera de braços abertos – talvez logo ali na esquina. Hoje meu braço esquerdo estava dormente. Podia ver as cicatrizes no pulso de pele pálida. Talvez eu tenha um infarto. Mas não era hora de pensar nisso. No que eu estava pensando mesmo?

Na vida. No futuro. Em mim. Na noite fria. Não seria tudo a mesma coisa? Não seria tudo ilusão – eu inclusive? Impossível dizer. Todo esse cansaço, toda essa escuridão disforme... tudo. Não sei, e tenho impressão de que não saberei nunca. Sinto-me estúpido, incapaz – tantas respostas permanentemente fora do meu alcance. Será mesmo isso a vida? Assim, incerta, inevitável, com vontade própria? Tão complicada, tão contraditória... a vida.

Incenso de sândalo, plantas quase murchas, solidão. Eu me construo em meio à solidão. É o único meio, a única forma. Interferências externas são apenas distrações. Eu só me conheço – e reconheço – quando estou só. A solidão me constitui como parte essencial do meu ser. Eu sou a solidão e a solidão sou eu. No mundo exterior a mim, eu sou apenas um reflexo de mim mesmo, nunca o verdadeiro eu. Assim como todos, assim como ninguém.

A lógica não se aplica nesses casos – em casos como o meu. A lógica nunca fez parte da minha vida, e quando fez, era apenas ilusão, disfarçando uma loucura ainda maior do que aquela em que eu vivia. A minha razão sempre esteve a serviço da minha loucura, do meu caos interior, ou seja: sempre esteve contra mim – como tudo, como todos, como eu mesmo, sempre.

Era como uma dança, eu e a loucura. Não, a loucura era a música, era ela quem ditava o ritmo dos passos, a direção a tomar; eu apenas acompanhava, era conduzido como uma donzela na noite de núpcias, até que a dor vinha e o sangue jorrava – era inevitável, o sacrifício, a minha loucura sempre me sacrificando. Sangue de virgens e nanquim, e a sombra da loucura como a lâmina de uma guilhotina pairando sobre a minha cabeça, sempre, desde sempre e para sempre – eterna condenação.

domingo, 24 de maio de 2009

?

De que adianta jogar-te verdades na cara, se elas secam como lágrimas ao sol?

Não!

Deitado aqui, nesse chão maldito e frio, eu penso nas tuas palavras; como sempre, nas tuas palavras. Pulso imobilizado, bêbado de vinho e cerveja, as palavras de Hermann Hesse ressoando na cabeça; mas sobretudo as tuas palavras, sempre tão exatas, sempre tão minhas. Te compreendo e não te compreendo, no mesmo instante, no mesmo segundo, com a cabeça turva e um blues ao fundo, no chão sujo e com os cabelos na cara, te compreendo e não te compreendo. Não; na verdade te compreendo, mas não aceito; não vindo de ti, não de ti: sempre minha força, minha luz quando todo o resto era escuridão, inclusive meu coração e minha alma. Não aceito a tua desistência, portanto levanta a cabeça e luta!

(Escrito com lágrimas nos olhos.)

terça-feira, 19 de maio de 2009

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Senti falta disso aqui...

Desconhecida

Tu nunca te interessaste por uma mulher completamente desconhecida? Ah, então tu não entendes a mágica que é isso. É muito fácil te interessares por alguém que conheces, que gostas, que convive contigo diariamente. Mas a mágica de te interessares por uma pessoa que te é completamente estranha reside justamente na possibilidade de poder desvendá-la, alguém inteiramente novo. Talvez, ao final, tuas expectativas não sejam correspondidas, mas tudo já terá valido apenas pelo processo de descoberta dela em si, outra mulher, outra pessoa, que agora é tua – talvez não no corpo e no coração, mas sempre na mente e na alma.

Momento Caio F.

O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias.

Fernanda (da série "Memórias de Antes de Tudo Acontecer")

A história de Fernanda não é uma história trágica como a de Beatriz, a estrelete. Trágica talvez, só para mim. Fernanda que me amou e a quem eu amei. Amei quando ainda tinha a capacidade de amar. Amar é uma faculdade do espírito, que às vezes se perde no meio do caminho. A minha se perdeu depois de Fernanda, e depois de tantas outras mulheres que passaram pela minha vida. Quanto a mim e Fernanda, nos perdemos um do outro pelo caminho. O destino não quis, de alguma forma misteriosa e sublime. Um espírito maligno soprou-lhe no delicado ouvido o desejo de se ver livre de mim, e ela atendeu com devoção; imersa na dúvida, mas com o ímpeto furioso de sempre. Mulher do signo de Áries. Elemento fogo. Indomável. No fim, a função essencial do fogo é a destruição, fazer com que tudo arda até só restarem cinzas. “A cinza é mais digna que a matéria intacta.” E nós destruímos um ao outro, nos devoramos em chamas. De mim, só restaram cinzas; dela, nada sei. Perdemo-nos um do outro. O destino não quis. “O destino desfolhou.” O fogo ardeu. Foi demais pra ela. Foi demais pra nós. O fogo. O amor.

Contornos

Eu odeio um monte de coisas sobre as pessoas e a vida. Na verdade eu não odeio, apenas estou cansado. De tudo. De todos. É como uma roda gigante que gira gira gira sempre no mesmo lugar. Estou cansado de ver as mesmas paisagens. Quero algo novo, fresco, diferente. Multidões me desconcentram. Elas não têm glamour nenhum. Só uma massa disforme de pessoas cinza e coloridas, tudo ao mesmo tempo e agora. É agoniante. Elas estão agonizantes. E eu não sinto vontade nenhuma de ajudá-las. Elas não se ajudam. Às vezes acho que eu não pertenço a esse mundo. Quase sempre, aliás. Toda vez que eu saio à rua e vejo pessoas. Pessoas tão diferentes de mim. Eu tão diferente delas, de todo o resto, fora do mundo. É tão interessante observar as pessoas. São como formigas em um formigueiro. Ninguém sabe exatamente o que está fazendo, mas todas sabem que precisam fazer aquilo. Chega a ser hilário. Mas na verdade é deprimente. Nunca fui bom em crítica social. Não gosto disso. Sou egocêntrico. Só o que me interessa sou eu mesmo. As pessoas que se fodam, o mundo que se foda. Não me interessa, nada me interessa, ninguém me interessa, eu só quero paz – não para o mundo, para mim.

Revelação

A vida se move, pulsa ao meu redor, e eu assisto a tudo como se estivesse fora do mundo. As pessoas, suas vidas, o cotidiano, tudo. Assisto de fora. E o que vejo? Miséria. Não física, não econômica; miséria intelectual, miséria de espírito. As pessoas estão espiritualmente miseráveis. Suas almas estão gastas e cansadas. Perderam a cor, perderam a força, perderam os desejos. Almas desbotadas são o que vejo por aí todos os dias nas ruas. Roupas coloridas, sorrisos, pessoas falando alto. Tudo disfarce. Tudo ilusão. Elas tentam enganar a todos, mas principalmente a si mesmas. Tudo ilusão. Besteira. Bobagem. O que eu vejo? Merda. Uma desorganização sem sentido. Caos. Casualidade. Coincidências. Nenhum sentido oculto, nenhum propósito maior. Apenas vida e morte brigando como dois cães numa rinha. Apenas o acaso. Nenhum deus acima de nós regendo os nossos destinos, nenhum anjo a nos proteger, nenhum demônio a nos tentar – a não ser os nossos pequenos (grandes) demônios interiores. Tudo ilusão. Só o que vejo… é nada.

Eterno Retorno

Cigarros & vinho. O gosto amargo e acre da decadência em uma madrugada fria e solitária. Já perdi a conta de quantas vezes essa cena já se repetiu. Já estou cansado de falar de ciclos, temática viciada, mas as coisas não seguem em frente, apenas rodam e rodam e rodam sem fim.

Detesto o gosto do cigarro. O vinho tenta aplacar, mas não consegue completamente. Decadência pura. Gosto de derrota. Ângela canta ao fundo na madrugada fria, “tola foi você / por me abandonar / eu que tinha tanto amor a dar”, mas fui sempre eu que as abandonei, não tenho direito ou coragem de reclamar da solidão.

Vento frio na noite estrelada. Outono. Escrevo no escuro. Tentativas. Buscando alguma nobreza perdida, com o cigarro quase a queimar-me os dedos. Afastando amigos e amores, cada vez mais como um velho lobo solitário de 21 longos anos. Cada vez mais. Às vezes acho que eu não sei amar. Às vezes acho que não quero. Eu sou uma incógnita pra mim mesmo. Será que alguém será capaz de me explicar? De chegar pra mim e dizer, “olha, isso é tudo ilusão, ouro dos tolos, na verdade tu é assim e assado, igual a todo mundo.”? Bobagem, eu sei.

Tinha impressão de que eu havia mudado de ciclo, mas vejo que ainda estou muito preso ao ciclo anterior. Amarguras na mente e na alma. Os mesmos hábitos, as mesmas pessoas, os mesmos vícios. Os mesmos lugares. As mesmas fugas frustradas… tudo uma merda.

Tudo inútil. Tudo ilusão. Desesperos forçados. Escuridão eterna. Tentativas. Meu vocabulário está tão viciado quanto a minha vida. Um em conseqüência do outro, e vice-versa.

Tudo uma merda.

Ilusão.

“Escolhas sem escolha.”

Buscando um fim que não existe.

Uma evolução.

Um amor.

Um amor…

rascunho/esboço/tentativa

Eu gosto de riscar palavras sobre o papel. Relaxa-me, me acalma. Sem reforma ortográfica, sem “função social”. “Auto-exorcismo” mesmo, como já dizia o Caio. E as cartas, as cartas que escrevo para poucas e importantes pessoas, as cartas que me fazem tão bem. A minha vida nas folhas de papel. Lindíssimo. Não estou inspirado hoje. Leio Machado e sinto vontade de escrever, mas a inspiração não vem. Acho que é porque não está acontecendo nada na minha vida. Tédio, monotonia… nada. Várias perspectivas que se delineiam e se esboroam a seu bel-prazer. Nada de útil, nada efetivo, nada sinceramente verdadeiro. Uns delírios, umas emoções exageradas… e a secura. Na boca, no coração. Sentimentos áridos, pensamentos escassos. Falta chuva dentro de mim. Sinto-me como um nordestino no sertão. O sol castigando a ponto de não deixar perceber mais nada. Macabéa. Vazio. Burrice. Cego aos sentimentos. Surdo aos pensamentos. Antigamente costumava enxergar só para dentro – sempre alienado –, agora nem isso. Forçando textos fracos. Tudo falsidade, tudo agonia. Agonia de viver. Agonia de morrer. Falsidade. Falsidade…

Momento de Transição

Não, eu não mudei. Talvez tenha mudado, mas foi uma mudança imperceptível aos olhos de todos que não eu mesmo. Muitos dirão que eu não quero crescer, Síndrome de Peter Pan. Outros dirão que eu quero simplesmente ser do contra. Digo que já cresci muito nessas buscas individuais, embora talvez ninguém perceba. E já faz tempo que eu deixei de ser “do contra”. Na verdade eu nunca tive paciência para essas contrariedades fortes. Ser polêmico. Sustentar opiniões. Discutir. O que me move hoje é a descrença. Como? Por quê? Pra quê? Ainda não tenho condições de responder a estas perguntas. Estou em um momento de transição, abandonando um antigo ciclo e esperando que outro se inicie. Não tenho nenhuma resposta clara – nem sobre mim mesmo, nem sobre o mundo – no momento. Espero muitas coisas, mas a verdade é que nesse caos que sou eu, não sei direito o que esperar. Tenho vislumbres de esperanças, que não são exatamente esperanças, são coisas que eu quero pra mim – eu, sempre leonino egocêntrico, sempre querendo tudo pra mim –, mas mesmo essas esperanças, esses quereres, são difusos e nebulosos, ainda não se apresentam em contornos definidos. Escrevo uma carta de milhares de páginas para a única pessoa que poderá entender. Provavelmente não adiantará de nada. O “se importar” possui inúmeros níveis, e as minhas exigências são sempre altas demais. O egocentrismo que nem 10.000 ciclos irão extinguir. Não tenho um propósito, um objetivo, um fundamento para estar escrevendo isto. Apenas tento me encontrar. Tento aglutinar pedaços desconhecidos de mim que vão surgindo, e assim reconstruir o meu ser. Esta eterna reconstrução que também pode ser considerada um ciclo – e o é, de fato. Mas eu percebo claramente a definição dos meus ciclos que se encerram. Janeiro/2005 – Julho/2006. Três semestres que eu poderia chamar de “O Ciclo do Horror”. Agosto/2006 – Fevereiro/2009. Cinco semestres de um ciclo recém encerrado, que ainda não consigo denominar. Tudo foi válido. Eu aprendi com cada dor, com cada cicatriz. Com cada experiência intensa. E nesse ciclo caótico – “O Ciclo do Caos” – um dos maiores aprendizados foi com uma ausência. Eu, que tive tantas presenças importantes. Talvez justamente por isso. Sei lá. O fato é que eu espero uma vida nova daqui pra frente. Não tenho a mínima idéia de como ela deverá ser. Ainda tenho muitas ânsias & angústias. Mais ânsias do que angústias. Já aprendi a lidar com as minhas angústias, eu diria que elas estão em processo de extinção. Mas as ânsias só vêm aumentando. Já a descrença e o ceticismo parecem ter entrado em equilíbrio. Quanto a mim, espero. Não sei exatamente pelo quê. Por um novo ciclo que está por se iniciar. Por algo mais. Me permito novamente ter uma esperança mal-definida e disforme – e isso já é uma evolução, acreditem. Eu sempre quis fazer a diferença no mundo, na vida, para alguém. Não sei se isso ainda faz algum sentido. Parece que sim. Provavelmente o que de mais importante eu carrego do ciclo passado é uma ausência que acabou por se tornar a pessoa mais presente na minha vida. O futuro é incerto, mas já é um começo.

“Não mais um rosto inchado de mágoa, não mais muros, não mais máscaras: Minha face limpa, e um sorriso apenas.”

E eu só fui entender agora.

A Volta

Após um período de experimentação no wordpress, eu cheguei à conclusão que o detesto, na mesma proporção em que ele me detesta. Devido a esta incompatibilidade – e também por uma questão de nostalgia, afinal há muitos momentos bonitos aqui, que mesmo o meu coração de pedra titubeia em abandonar –, eu decidi ressucitar este blog. Coffee & Strawberry forever.

sexta-feira, 27 de março de 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Caio F.

"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como “estou contente oura vez”. Ou simplesmente “continuo”, porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como “sempre” ou “nunca”. Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim – nós, não. Contidamente, continuamos. E substituímos expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”. Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.

Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente – e não importa – essa coisa que chamarás, com cuidado, de “uma ausência”. E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.

Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás – aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na lagartixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.

Ficou tão longe o tempo das caudas decepadas das lagartixas, tão longe o tempo dos círculos de fogo em torno dos escorpiões, longe o tempo do sal sobre as lesmas, o tempo dos espinhos no traseiro das formigas, da pedra no peito dos passarinhos. Acendendo um cigarro, pensarás com ironia na lei do retorno. “Aqui se faz, aqui se paga!” – repete uma avó implacável na memória.

E agora: como se houvesse um deus menino, igual ao que foste naquele tempo longe que ficou, decepando cotidianamente a tua cauda (para que a regeneres), criando círculos de fogo em torno de teu corpo (para que te mates), gotejando lentamente o sal sobre tua pele (para que te dissolvas), cravando-te espinhos (para que te contorças) e procurando-te com o bodoque e a pedra afiada (para que te esvaias em sangue) no meio desse mato de palavras onde procuras disfarçar teu medo.

Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada mas tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.

Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
– ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga, mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca..."

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

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O meu desgosto pela vida é contagioso.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Carta ao Zézim (por Caio F.)

Porque quando a dúvida assola, é sempre bom lembrar.

"Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.

Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.

E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.

Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido."

Café

Tomo o café amargo, não, amargo não, doce, muito doce, tomo o café muito doce em cima do gozo de gosto e cheiro muito fortes, e quase esqueço o sabor dela.

sobre a indiferença

A indiferença é um veneno. Ela ela corrói, destrói tudo o que há por dentro, até que aquilo que um dia foi o teu ser seja apenas uma casca vazia, oca. Até não sobrar nada. A indiferença é uma pequena morte - não tão pequena assim. A indiferença é um fim. O fim de tudo aquilo que um dia foste tu. A indiferença consome. Como o fogo. Até só restarem cinzas.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Um história sobre traças

Eu estava sentado na privada observando as traças. Foi assim que aconteceu. Exatamente assim. Eu sentado sozinho – solitário – no meio daquele banheiro de azulejos muito claros e traças andando pelo chão. Aqui em casa têm muitas traças, você sabe. Mas não são daquelas traças compridinhas, que vivem nos armários e comem as roupas. As traças aqui de casa são diferentes. Elas têm a forma de um losango, e são levemente duras. Há uma espécie de verme dentro do losango, uma minhoquinha – viste, o losango levemente duro é só uma carapaça, como um caramujo –, e essa minhoquinha, às vezes, ao se deparar com um obstáculo, some para dentro do losango levemente duro, e algum tempo depois ela aparece do outro lado, e começa a andar para onde antes seria atrás. Tu não achas isso genial? Eu passei muito tempo observando estas traças aqui de casa. Elas vivem no meio da poeira. E aqui em casa sempre teve tanta poeira, você sabe. Não que eu seja relapso com a limpeza – eu sempre fui chato com limpeza, você lembra? –, mas há muita poeira. E traças. Antes eu achava que as traças nasciam da poeira – talvez nasçam –, mas agora eu acho que elas é que tecem a poeira, assim como as aranhas tecem as teias. Sempre há várias traças losangulares perto daquelas bolas de poeira pelo chão. Eu me admiro do gato ainda não ter comido nenhuma. Ah, não te contei? Agora eu tenho um gato. O nome dele é Morisco – você se lembra do El Morisco, o baixinho mexicano? Mas deixa eu te contar, no começo, quando o gato veio pra cá, bem novinho, ninguém sabia se era gato ou gata, então ninguém sabia se chamava de Morisco ou Morisca. Foi incrível, cada pessoa que chegava aqui dizia uma coisa diferente. O coitado do gato trocou de sexo umas cinco vezes. No pet shop até colocaram fitinhas cor-de-rosa nas orelhas dele, acredita? Mas agora ele cresceu e definiu-se: é, de fato, um gato. El Morisco. E não corre atrás das traças. É bem preguiçoso. Dorme boa parte do dia e da noite. Mas eu tava te contando do momento em que eu estava sentado na privada observando as traças. Foi aí que eu lembrei. E essa lembrança me trouxe tantas outras coisas, arrastou, como uma correnteza, uma série de outras lembranças que eu não queria lembrar – ou queria? Mas o fato de lembrar fez com que eu sentisse de novo, latejante, como uma velha ferida de guerra prenunciando um temporal. Eu escancarei a janela e abri os dois braços bem altos em direção ao céu, eu queria aquele temporal todo pra mim, aquela ventania me enregelando, aquela chuva me molhando, aquela energia de renovação. Você se lembra quando eu, bêbado, saí pra caminhar no temporal, pra absorver as energias? Caminhei meia hora embaixo daquela chuva torrencial e depois passei um mês doente. Quase peguei uma pneumonia. Você se lembra? Eu não tinha jeito mesmo. Sempre teimoso e cabeça-dura. Meu pai me chamava de cabeça-de-martelo – uma das únicas coisas que eu me lembro dele –, vai ver era por isso. Mas daí, durante o temporal, tudo foi se agravando. A tarde ficou cinza e aquela lembrança foi latejando cada vez mais, como se ainda fosse um fato – e não era? Sabe, eu considero essa distância um fato, um acontecimento, quase um objeto, algo empírico, que eu quase posso tocar, essa distância entre nós. Eu aqui, com traças losangulares & El Morisco. Você aí, distante. A lembrança inicial, latejante, que causou tudo isso, não era uma lembrança assim tão importante. Era corriqueira até, dessas que você tem milhares iguais durante a vida, e não dá muita bola. Poderia ter sido a lembrança de um fim de semana chuvoso, entre as cobertas, assistindo filmes e comendo chocolates; ou poderia ter sido a lembrança de uma viajem, talvez a praia, talvez a serra, a Argentina ou o Uruguai; ou poderia ser a lembrança de alguma noite intensa de sexo desvairado, blues, rosas, corselet & cinta-liga, morangos. Mas foi uma lembrança simples, singela até, comum. Me lembrei de você dormindo. Quantas noites dormi com você, foram meses – anos talvez? Mas me lembrei de você dormindo e aquilo criou um abismo tempestuoso dentro de mim. Pisei na traças, afoguei-as com álcool. Joguei o gato para longe da minha cama, com raiva, nem me lembro mais o seu nome – seria algo espanhol? Mas depois tudo se acalmou, e a compreensão veio lenta, como a calmaria após o temporal, quase ao mesmo tempo. Você me fazia falta. Era isso. Esse era o abismo. As traças, El Morisco, o temporal, tudo era distração. Eu não percebia, não queria perceber, mas você me fazia falta. E essa falta era latejante, como velha ferida de guerra em dia de chuva. Talvez fosse isso: sua falta era uma ferida. Em algum lugar do peito, por baixo das costelas, uma ferida que latejava em descompasso com a pulsação que havia ali dentro. Quis te trazer de volta. De alguma forma assim meio incoerente, inconseqüente – como eu sempre fui. Mas já era tarde. As traças estavam mortas, o temporal passara & El Morisco me odiava. E você não voltaria nunca mais.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Merda-movediça

Foi num dia qualquer da semana passada ou retrasada, eu acho. Não consigo me lembrar se foi durante a semana ou no final de semana, eu tenho andado sempre muito bêbado ultimamente. Ela chegou em minha casa dizendo que tinha duas notícia pra mim, uma boa e outra ruim. Eu não queria ouvir nada, só queria comê-la, mas quando vi o sangue que escorria por entre suas pernas, manchando a calça clara e quadriculada, sentei-me, abri outra cerveja, acendi um cigarro e disse em tom contrariado:
– Fala.

A notícia boa era que eu não seria pai, e a má era que se eu quisesse comê-la teria que fazer uma baita sujeira. Ela estava louca pra me dar, mas conversando comigo percebeu – e não falou nada – que tinha abortado – e eu também percebi – e não falei nada – e ela teve uma crise de consciência pesada e começou a chorar.
Eu tive vontade de espancá-la, mas ela gostava de apanhar.

Bate que eu gosto... – Ela sussurrava no meu ouvido, e eu virava ela de bruços e batia com força naquela bunda grande e mole – embora ela ainda fosse muito gostosinha.

Deitamos. Eu comecei a masturbá-la com nojo, mas com muito tesão pra conseguir parar. Poderia ter pedido um boquete, mas ela não sabia fazer. Era agoniante. Ela mordia, passava os dentes, beliscava e não fazia nada que prestasse. Há certos boquetes que enternecem o coração da gente. O dela dava vontade de dar-lhe um belo chute no traseiro.

Quando tirei minha mão d’entre suas pernas, ela estava toda manchada de vermelho e fedia. Mas não era fedor de porra: era fedor de sangue velho.

A tentativa de foda não rendeu. Deitamos de novo. Ela chorava e dizia que não merecia estar viva e eu torcia para que ela se atirasse pela janela e agradecia ao meu anjo da guarda por ter decapitado meu filho com sua espada flamejante, enquanto passava a mão na cabeça dela e dizia:
– Não fica assim...

Eu a detestava profundamente. As suas certezas, as suas verdades absolutas, o seu amor, o seu “para sempre”. Ela era uma adolescente problemática e eu não tinha mais paciência para crianças. Mas foi quando ela disse:
– Me come. – Com um olhar que significava:
“Vamos ter um filho?” Foi que eu tive vontade de jogá-la nua porta afora e trancá-la do lado de fora da minha vida para nunca mais abrir.

Não adianta. Eu já tentei. Eu não tenho o dom. Eu não tenho aquela coisa melosa e bonitinha que se precisa ter para que os relacionamentos funcionem.

Eu gosto de uma boa foda, de um cigarro e de uma cerveja. O resto é um monte de merda. Um monte de merda em que estou atolado, e que daqui a pouco vai cobrir a minha cabeça e me matar sufocado. Como areia-movediça. Estou preso em um monte de merda-movediça.

sobre a impulsividade

A impulsividade, no limite, é uma forma de lógica, pois ser impulsivo não é nada além de seguir suas próprias vontades, e não há nada mais lógico do que isso.

sábado, 24 de janeiro de 2009

no fear

Preciso me livrar dos meus medos. Entregar-me de corpo e alma à esta coisa vertiginosa que é escrever.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Crise

Acho que pela primeira vez em muito tempo eu estou enfrentando uma crise de verdade, que não foi forjada e tem força própria.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Epifania-desabafo

Tive uma epifania brutal hoje, da qual eu não estou conseguindo me recuperar. Chorei horrores, como há séculos não conseguia chorar.

Sabe aqueles desenhos da Disney, onde os personagens param em frente a uma bifurcação, onde um dos caminhos é plano, ensolarado e florido; e o outro é tortuoso, escuro, com raios & trovões? Pois é, hoje percebi que eu escolhi o caminho tortuoso, sei lá eu porquê, escolhas sem escolhas, e eu queria tanto estar no outro caminho, tanto...

Bem, vou contar o que desencadeou a minha epifania.

Tudo aconteceu hoje quando, meio sem querer, por descuido, desatenção ou tédio, sei lá, eu acabei parando no orkut de um velho amigo, o George – que eu sempre conheci como Gê. O Gê foi o meu grande amigo de infância, aliás o meu único amigo de verdade até a sexta série – ou doze anos, tanto faz –, e eu sou muito grato à ele por isso até hoje. O Gê sempre foi o meu grande exemplo de tudo o que eu sempre achei que uma pessoa deveria ser para que fosse uma boa pessoa. Educado, gentil, inteligente culto, sempre disposto a ajudar. Acho que ele foi uma ótima influência pra mim – eu seria bem pior hoje se não tivesse conhecido o Gê naquela época. Mas daí eu entrei hoje no orkut do Gê e fiquei tri feliz, porque ele tá muito bem, tá estudando, viajando,fazendo amigos, levando uma boa vida – como sempre esperei que o Gê fosse levar, ele merece. Me bateu até uma nostalgia, saudades de conversar com o Gê, assistir anime, jogar Playstation e futebol no pátio do prédio. O Gê é um cara de muita sorte, ele merece tudo de bom.

Mas daí eu me toquei de uma coisa. O Gê seguiu pelo caminho bonito e ensolarado, méritos dele – é claro. Mas foi aí que eu me dei conta de que eu segui pelo outro caminho, e o contraste foi muito grande – assim como o choque.

O Gê tem a mesma idade que eu, 21, eu faço aniversário em agosto e ele em outubro. Ambos nos formamos no terceiro ano em 2004. Ambos fizemos vestibular na UFRGS em janeiro de 2005, eu pra Relações Internacionais e o Gê pra medicina, e ambos não passamos. Coisa normal, colégios de interior, essas coisas. Mas daí o que aconteceu? O Gê fez um ano de cursinho e passou em medicina na UFRGS – eu sempre soube que ele ia conseguir, o Gê é o cara – e eu... não fiz nada. Pois é, aí que entra a minha epifania. Pois foi a partir do momento pós-vestibular-da-UFRGS que tudo se encaminhou ao desastre e me trouxe ao momento exato em que me encontro agora. Pela lógica, eu deveria ter feito – também – um ano de cursinho e passado em Relações Internacionais na UFRGS. E o que aconteceu ao invés disso? Uma sucessão de erros grotescos na minha vida. Um semestre de Administração na Unisc, morando numa pensão desprezível em Santa Cruz. Um semestre de Comércio Exterior na Univates, trazido à força pra Lajeado – minhas mudanças sempre foram à força, todas elas –, com direito a trancar cadeiras no meio do semestre & à crises suicidas, cortes nos pulsos, caixas de sedativos com cerveja, depressão profunda, psicólogos, psiquiatras, terapeutas, antidepressivos e todo esse caos. Depois o primeiro semestre de 2006 – estão acompanhando? – de total marasmos, sem nada nem ninguém, apenas Legião Urbana e pilhas de livros do Edgar Allan Poe. E depois jornalismo, Univates, Lajeado, cinco semestres, muitos surtos, muita literatura, eu me afirmando como escritor, uma fuga para Buenos Aires, muita bebida e eu assumindo a minha total decadência.

Vocês acompanharam o quadro, não é? (Desastroso.) Então a pergunta da epifania: Por que eu não fiz um ano de cursinho e fui cursar Relações Internacionais na UFRGS? Sabe, eu teria sido feliz sendo um estudante de Relações Internacionais da UFRGS. Sabe, naquele tempo, do ensino médio, terceiro ano, formatura, cursinho, essas coisas todas, naquele tempo eu queria ser diplomata. Por isso Relações Internacionais. Acho que se eu realmente cursasse, além de ser feliz, depois de alguns anos eu realmente conseguiria entrar na escola do Instituto Rio Branco. Eu sempre fui meio inteligentezinho, e com umas forças de vontade aqui e ali, as coisas dariam certo – não é idealização, eu sei que dariam, uma espécie de realidade alternativa, universo paralelo. E eu tenho certeza que eu também seria muito feliz na minha vida de diplomata. Sonhos adolescentes com tudo para se realizarem. Mas então por que eu não fiz a droga do cursinho depois do terceiro ano?!

(Observação: Ok, agora eu vou fazer uma coisa que não se faz, mas que se tornou inevitável diante da situação: eu vou culpar alguém. E não serei eu mesmo. Se tens problemas com isso, pare de ler agora.)

A culpa é da minha mãe. Veja bem, eu não costumo culpar a minha mãe. Eu gosto muito da minha mãe, e eu sei que ela já fez vários sacrifícios por mim, mas nesse caso, a culpa é – quase – inteiramente dela. E a culpa dela se dá em um fato empírico, inegável e que independe de interpretações: ela não quis pagar o cursinho. E o ato de não pagar o cursinho me jogou com a cara no chão do caminho tortuoso e fechou as portas do caminho ensolarado pra mim. Aquilo foi o começo de todo o caos já citado acima, que foi a minha vida nos últimos anos. Aquilo originou toda a depressão, todos os surtos psicóticos, toda a descrença e, por fim, me jogou de corpo & alma no mundo dos livros – a única fuga que me restou.

Se hoje eu sou um escritor decadente, bêbado, que não acredita no amor, nem nas pessoas, nem em nada, que mora sozinho com um gato e decorações estranhas, que é anti-social e não gosta de quase nada, a culpa é, invariavelmente, da minha mãe.

Ok, já desabafei.

Eu ainda estou me recuperando de todas essas percepções repentinas e não tenho mais nada a dizer por enquanto.



P.S.: Desculpem pelos erros de português, não tenho cabeça pra revisar isso agora.

P.S.II: Gê, muita sorte pra ti, porque tu merece. Tu ainda vai ser um grande cara, mais do que agora, eu sei disso. Abraço.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

...

Bêbado.
Sozinho.
Sempre.
...
O resto é ilusão.
Sempre.

♫ Jolene - White Stripes

domingo, 18 de janeiro de 2009

Noite

Dois filetes. São sempre dois filetes. Fumaça saindo em par da ponta do incenso. E a solidão. Sem par algum. Três plantas quase murchas, semi-mortas, e um gato jovem demais, agitado demais, vivo demais. Tudo isso tentando ocupar espaço no apartamento vazio. No coração vazio. Ilusões. Esperanças forjadas. Sabe, tem aquela menina tão bonita e tão inteligente quê. Três dias de chuva, ininterrupta. Frio em pleno verão. Calça de abrigo, blusa de moletom. Cama vazia, a não ser pelo gato, que se aninha em meus cabelos compridos, sobre o travesseiro. Frio. Edredons com o meu cheiro e o de mais ninguém. Um dragão de bronze, uma carranca argentina, uma estatueta de São Jorge, peças de artesanato em ferro e taquara. Incensos. Um prato de sal grosso, marinho, embaixo da cama e um gato. Apartamento vazio cheio de fantasmas. Eu durmo com um terço enrolado no pulso esquerdo, sabia? E aperto bem forte o crucifixo dentro da mão. Cruz: instrumento de tortura. O ank que eu carrego pendurado no pescoço eu tiro pra dormir. Dormir: nunca à noite. Fantasmas, sabe. Assombrado por mim mesmo. Pantufas grossas. Pretas, peludas. Imitando uma pantera. Olhos verdes, a pantufa, a pantera. Um tango ao fundo. Depois o silêncio. O incenso quase no fim. A noite se rendendo. O cansaço. Mais uma noite. Estômago doído, olhos pesados. Mais uma noite.

Escultura

Nós somos como esculturas. No começo da vida somos como um bloco maciço de pedra bruta. Conforme a vida vai nos esculpindo, vamos ficando mais belos e sofisticados, ou horríveis e monstruosos, ou ambos, por que não? Mas o importante é que essa escultura vai sendo feita cada vez mais para o interior do grande bloco de pedra cinza que somos nós, cada vez mais pra dentro, tirando lascas e arrancando faíscas, eliminando tudo aquilo que é desnecessário, supérfluo. Ao final, a escultura pronta deve conter apenas o nosso mais puro interior, por mais belo ou monstruoso que seja.

tio Milan III

"Aquele que quer deixar o lugar em que vive não está feliz."

tio Milan II

"O amor físico lhes dava prazer, mas nenhuma consolação."

tio Milan I

"Tomas pensava: deitar com uma mulher e dormir com ela, eis duas paixões não somente diferentes mas quase contraditórias. O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma série inumerável de mulheres), mas pelo desejo do sono compartilhado (este desejo diz respeito a uma só mulher)."

viver

É aquela coisa de pegar a vida com as mãos e estraçalhar com os dentes.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

À F.H.A. (uma pessoa de um passado distante e empoeirado, dos tempos em que eu ainda não era eu)

Eu costumo dizer que nunca amei ninguém, mas a pessoa que cheguei mais perto de amar foste tu. Mas é claro, eu era - e continuo sendo - inábil para o amor. Eu nunca soube como amar e, talvez por isso, te feri. Perdoa. Tudo o que eu queria era te amar.

À beira do mar aberto

Te conto apenas o que quero que ouças, enquanto dissimulo todo o resto. Te mostro apenas o eu que quero que conheças, enquanto dissimulo o eu mais profundo e verdadeiro.

domingo, 4 de janeiro de 2009

À melhor

Minha semi-deusa decaída
tanto me atormentas em busca de tua divindade perdida

minha linda
cara-metade
alma gêmea
completude

menina de olhos azuis & alma rubra
minha eterna ilusão
minha liberdade.

Medo

Medo? O que é o medo?, já se perguntava Dostoiévski. Medo de ser, sentir, viver. Qual a função essencial do medo? Pra que ele serve? A que ele nos impulsiona? Ou será apenas um empecilho, puro e simples? Eu sempre acreditei que o medo nos levasse a algo maior. Afinal, além de um grande medo sempre se esconde uma grande conquista, mesmo que ela só faça sentido para o nosso eu interior. Pra mim o medo pode ser uma grande fonte de energia. Mais ou menos como a raiva. Adrenalina. Vontade de ir além. O medo como uma parede de tijolos que se quebra a marretadas, até as mão sangrarem. Mesmo que do outro lado não tenha nada, o importante é poder chegar ao outro lado. Acho que nenhuma das minhas conquistas até hoje teria tido o mesmo sabor sem o medo. As marretadas. O sangue. A superação. A coragem para ir além - porque a coragem verdadeira só existe quando se tem medo, muito medo. Parece que as coisas perdem um pouco o sentido, perdem a graça, quando deixamos de ter medo. Pensando bem, acho que eu sempre segui o caminho dos meus maiores medos. Sempre aquela busca incessante pelos sentimentos mais intensos - por piores que fossem. Na verdade, se é que existe alguma verdade, o medo não tem nada de mal, o medo é uma força propulsora essencial à vida. Sim, eu tenho medo. E eu sei que enquanto houver alguma coisa a temer eu, pelo menos, estarei vivo.

Yann Tiersen - La Dispute

sábado, 3 de janeiro de 2009

diálogo

- Por que a gente não deu certo?
- Porque eu sou egocêntrico & egoísta.
- Tu nunca amou ninguém?
- Não. Ninguém além de mim mesmo.
- Por quê?
- Porque eu tenho medo. Medo de depositar todo o meu amor em outra pessoa. É uma aposta muito arriscada. Eu acho que ela não aguentaria o peso.
- Mas tu é feliz assim?
- Não. Eu sou triste.
- Então por que tu não muda?
- Não consigo. Não tenho forças.
- Que pena...
- É...

marés

- Eu sou inconstante como as marés.
- Mas as marés são constantes.
- Tu é que pensa.

máxima para começar bem o ano

Em uma relação entre duas pessoas, a que ama menos é sempre a dominante.