sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Amor (ou Com Toda A Calma Do Mundo)

Andava. Simplesmente caminhava pela rua, sem rumo e sem destino. Chovia. Incessantemente. Pés encharcados, corpo gelado. Pensamento longe. Tentava compreender. Era uma busca, uma jornada interior. Afundava-se em si mesmo cada vez mais, até que o mundo exterior simplesmente deixasse de existir. Não conseguia chegar a um ponto de raciocínio claro; estava confuso e perdido. E ia indo pelo meio da chuva. Pensava que talvez, possivelmente, pudesse haver um meio, que deveria haver alguma forma de redenção, de purificação. Pensava que talvez ele não fosse tão ruim, não fosse tão mau, que talvez pudesse alcançar o reino dos céus ou uma tarde sossegada ou uma torta de maçã. Tinha de haver um jeito. Finalmente chegou em frente a uma porta. Tocou o interfone; voz de mulher o mandou subir. Ele pensava em torta de maçã quando ela abriu a porta. Cumprimentaram-se. Calorosamente, amorosamente, aquela intimidade gostosa e quente de quem já dormiu muitas noites juntos. Ele sentou-se no sofá tirando tênis e jaqueta molhada, enquanto ela lhe estendia uma toalha dizendo qualquer coisa como você-é-maluco-de-sair-andando-pelo-meio-da-cidade-numa-chuva-dessas-vai-pegar-uma-gripe-você-não-se-cuida-seu-louco. Ele ainda pensava na torta de maçã, tarde sossegada, reino dos céus. Vagamente sorriu. Eles sempre foram cúmplices velados, palavras eram desimportantes. Estavam os dois ali, na mesma sala, e havia uma aura de calor entre eles. Ela lhe entregou uma xícara de chá quente e desatou a falar coisas desordenadas e desimportantes. Você-viu-a-crise-no-senado; que-horror-essa-gripe-suína; tem-visto-a-novela-das-oito; parece-que-a-economia-está-se-recuperando. Ele murmurava baixinho reino dos céus, redenção, inferno, perdido. Nunca fora muito religioso, o reino dos céus que buscava era mais como algo filosófico, uma paz interior, um descanso para sua mente atormentada. Tirou as roupas molhadas, vestiu pijama de pelúcia cor-de-rosa com coelhinho na frente, enrolou-se em um cobertor quente e macio e tomou o chá. Reino dos céus, pensou. Ela parecia haver se acalmado; matado a primeira fome de uma companhia outra, que não fosse ela mesma. Agora olhava-o quieta, com olhos grandes de uma curiosidade calma. Ela compreendia que ele lhe contaria tudo; talvez levasse uma noite inteira, talvez uma semana, mas ele se desvelaria para ela, talvez até chorasse, e ela o consolaria, e então, exaustos, iriam dormir, na mesma cama, calor gostoso entre eles, compreensão mútua, talvez se amassem, mas seria tudo calmo e plácido, porque a época de angústias e ânsias entre eles já passara há muito. Ele continuava pensativo. Mas aos poucos foi falando, meio que para si mesmo, como num monólogo. Sabia que ela estava ali, mas também sabia que não havia nenhuma necessidade de interagir com ela, bastava pensar alto, que ela o ouviria, o compreenderia, o consolaria, e talvez até o amasse, um amor quente, carinhoso, quase como se ama uma criança; ele era a criança que havia se machucado, e ela lhe daria colo, secaria suas lágrimas, diria que está tudo bem e o amaria com um sorriso cálido. Ele estava exausto de tantas buscas, tantas desilusões, tanto horror cotidiano. Ela o observava plácida e terna, como uma deusa que em silencio se comove com as angústias mortais. Tentava aliviar o peso dele apenas com sua presença. E ele contava contava contava, deitado no colo dela, adormecido, continuava contando em sonhos, contava-lhe seus pesadelos, e ela se compadecia dele. Tinha impressão que ele continuaria a se revelar para ela mesmo depois da morte. Quando ele se calou ela ajudou-o a ir para a cama, sussurros leves, vem-levanta-vamos-pra-cama-tu-vai-ficar-todo-torto-dormindo-nesse-sofá. Deitaram-se, como sempre, aquela cama já tão familiar aos dois, os corpos um do outro já tão familiares, os cheiros, os gostos, os sons. Suas almas já estavam tão fundidas que seria impossível separá-las. Por fim, dormiram, como tantas vezes já haviam dormido, como tantas vezes ainda haveria de dormir. Com toda a calma do mundo.

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