quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Busca

E eu permaneço aqui. Varando madrugadas, bebendo cerveja, fumando cachimbo, lendo contos beats, com músicas de Elis Regina entre um e outro, pra disfarçar, um conto falando de putas e uma música falando de amor, devidamente alternados para não perturbar o meu frágil equilíbrio. Permaneço acordado esperando a manhã chegar para enfim poder dormir. À noite meus fantasmas me perturbam, derrubam quadros na minha cabeça e não me deixam descansar. Então fico sozinho por estas madrugadas forjando amores impossíveis e desesperados, buscando companhias mil para disfarçar a solidão indisfarçável. Tento dissimular a pessoa detestável que sou, talvez em busca de alguém, um alguém que também dissimule, que finja não ver fundo demais, que sorria e diga que acredita em tudo e que me ame. A névoa toma conta das madrugadas frias, e em meio à total solidão eu busco amor. Palavrinha complexa, indefinível. Busco um amor assim, meio distante, pra dramatizar um pouco, afinal, preciso do drama, mas busco um amor, que aqui e ali talvez até me convença que a vida não é tão ruim, que as pessoas não são tão más, que o mundo tem solução. Busco um amor redentor, eu, que tão perdido estou. Busco a felicidade, se é que isso existe. Busco tudo o que eu me dissera para não buscar, acho que justamente por isso. Mas sabem como são as buscas, levam tempo e dedicação, necessitam paciência e perseverança, e eu nunca tive nada disso. Eu sempre me perdi pelos caminhos errados, e acho que desta vez não vai ser diferente.

Espera

Estou aqui, sentado, sozinho, esperando que alguma coisa mude, esperando que alguma coisa aconteça, esperando... Eu nunca gostei de esperar, eu nunca soube esperar, mas espero. Tudo o que me restou foi esperar. O resto todo foi embora. Todos foram embora. E eu fiquei aqui, esperando sei-lá-o-quê. Agora me diz: de que serve tudo isto? Aprendizado, compreensão e todo esse blá-blá-blá. Necessária solidão auto-destrutiva e criadora. Redenção. Uma espécie incompreensível de alguma redenção perdida. Por que é tão difícil? São só uns riscos no papel. Não significam nada. Nem pra mim, nem pra ninguém. Não sei o que vai acontecer. Nunca soube mesmo, mas sempre esperei o pior. Vai ver é porque eu sei que hora ou outra ele acaba vindo, o pior.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Papilas Gustativas

Dizem que quando a gente vai ficando velho, a gente vai perdendo as papilas gustativas, aquelas bolinhas na língua que fazem com que a gente sinta o sabor das coisas. Por isso que os velhos costumam carregar tanto nos temperos. Porque eles não sentem mais o gosto. Pois bem, acho que a minha alma está ficando velha, que as papilas gustativas do meu espírito estão se perdendo. Não consigo mais sentir o sabor da vida, tenho que carregar nas emoções apimentadas e nos sentimentos agridoces para ter um vislumbre dos sabores de outrora.

Mulheres

O que os seios significam para uma mulher? Será que o mesmo que o pênis significa para um homem? Por que as mulheres que não têm peito sentem-se inferiores às mulheres que possuem seios fartos? Afinal, são apenas dois pedaços de carne. Não, na verdade são bem mais do que isso. São uma prévia indiscutível – pelo menos na visão feminina – da competência para o sexo. E seguindo esta lógica, são uma vantagem ainda mais indiscutível na batalha pela conquista dos homens. Os seios são uma arma. São símbolo de vitória.

Eu poderia discutir também por que as mulheres que não são mães sentem-se inferiores às que o são. Mas essa é uma questão mais biológica do que psicológica. O corpo da mulher foi feito para que ela fosse mãe. Ser mãe e a sua função social. Sem isso ela se sente uma fracassada. E a educação machista à que são submetidas contribui muito para isso.

As mulheres, sem dúvida, possuem muitos complexos. Mas enfim, mulheres são complexas por natureza, e se não o fossem os homens não as amariam. Elas mesmas não conseguiriam amarem-se umas às outras. A complexidade é algo inerente ao caráter feminino. Sem isso a mulher fica incompleta. Por mais simples que uma mulher possa parecer, ela sempre esconde uma grande e profunda complexidade em seu interior. O que acontece é que muitas vezes, geralmente por medo ou por algum outro motivo banal, ela esconde até de si mesma a sua própria complexidade, e fica vivendo como uma mulher simplória para agradar ao marido, aos filhos, aos pais, à família, aos amigos, à sociedade. Isso não é vida. Uma mulher necessita exercer a sua complexidade para ser verdadeiramente uma mulher, e não apenas um ser com uma vagina.


Leitura complementar: Fatos da vida animal

boquete

Tu podes saber se um relacionamento dará certo ou não pelo boquete. É impossível que um relacionamento com uma mulher que não saiba chupar funcione direito.

egocentrismo

Eu sou apenas mais um
mas não consigo ver
pois estou apaixonado por mim mesmo
e como todos sabem
a paixão
cega.

sexo

O sexo só pelo sexo fica vazio de sentido. A ilusão é o que nos mantém.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Leslie

Leslie vivia no campo e adorava chocolate. Era uma vida adocicada, calma e tranqüila. Com canto de pássaros e borbulho de águas calmas ao seu redor. Era enlouquecedor. Torturante. Os pássaros. O borbulho. A paz. Leslie possuía uma alma inquieta, necessitava de agitação, da vida corrida das metrópoles, ela precisava daquele ritmo frenético para sentir-se viva. Mas estava presa num cárcere sem paredes e em campo aberto. Campos. Sua prisão eram campos abertos. Como os campos das antigas guerras, quando ainda se lutava com espadas. Quando coragem e honra ainda tinham algum valor. Leslie estava presa e enlouquecia. Enlouquecia pelo fato de não viver a vida que escolhera para si, de não viver vida nenhuma. Enlouquecia pelo fato de não ter tido escolha – e isso serve como um alerta: a falta de escolhas enlouquece. As chamadas escolhas sem escolha, belíssimo termo, podem ser fatais. Há que se estar preparado para resignar-se, e às vezes a resignação e o desgosto matam. Leslie era uma pessoa desgostosa. Chorava convulsivamente, escondida para que não vissem sua fraqueza. Quase ninguém a via mesmo, mas caso visse, viria uma mulher forte e, quiçá, em raros momentos, alegre. Uma mulher feliz e realizada pela consciência do seu talento vão. E ninguém nunca seria capaz de ver a prisão sem muros que a corroia por dentro. Só havia o silêncio naquela grande casa de campo. E só havia o silêncio dentro de Leslie. Um silêncio tão absoluto que a enlouquecia. Mas em pequenas parcelas, mordidinhas, corroendo, segundo após segundo, minuto após minuto, hora após hora, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano, década após década. Por dentro ficava um buraco que a cada dia ia ficando mais fundo e mais escuro. E o vazio ia crescendo e as palavras iam escasseando e Leslie ia secando, morrendo de dentro pra fora, como uma árvore atingida por um raio, morta em sua essência, mas viva aos olhos dos outros, viva para o mundo. Podemos pensar em quantas pessoas nós conhecemos que são mortas por dentro e vivas para o mundo. Eu pensava em Leslie e Leslie morria. Mas não era uma morte puramente física, esse esgotamento do corpo era puramente um reflexo, a morte de Leslie era mais profunda, era uma morte espiritual, uma morte da qual ela não conseguia se livrar. Leslie morria enquanto todos à sua volta sorriam. Sorrisos falsos, simpatias forjadas, sopinha de legumes e pilhas de remédios. Essa era a receita mágica que devia salvar Leslie. Não adiantava de nada. No começo ela fingia melhoras, forjava falsas alegrias, tomava a sopa e os remédios. Depois ela deixou de se preocupar com isso. Isolou-se cada vez mais em si mesma, um processo contínuo, insolúvel e irreversível. Leslie morria. Mas sua alma irrequieta tinha ânsia de transmitir todos os conhecimentos que ela adquirira em incontáveis segundos de vivências mínimas e divagações infinitas. O vôo da joaninha a fazia questionar a existência de Deus e a origem do universo. Leslie era uma mente muito forte aprisionada em um corpo muito fraco. Havia um desequilíbrio evidente. Como eu já disse anteriormente, no começo ela lutava contra isso, mas depois ela se aceitou por inteira, com todas as suas potencialidades e deficiências. Aquela morte em vida era apenas um processo. Leslie era como uma larva que necessita passar pela eternidade de um casulo antes de poder resplandecer nos céus. Mas ela era impaciente. Fugia do nada para o nada. Fazia tentativas vãs que nem mesmo ela entendia. Na verdade não eram tentativas de morte, não eram tentativas de fuga. Eram tentativas de uma ressurreição mental e espiritual. Leslie estava completamente perdida. Ela necessitava de uma luz na escuridão. A vida trivial que as mulheres supostamente deveriam levar dava-lhe ânsias de vômito. No fundo, ela queria ser aceita pelo que ela era: uma escritora brilhante e talentosa, e nada mais. Ela possuía as suas excentricidades e sabia disso, mas isso não era da alçada das outras pessoas e não cabia a ninguém, além dela mesma – e às vezes nem mesmo ela –, julgá-la. Aquela paz e serenidade iam deixando-a cada vez mais angustiada, pois cada vez mais ia bloqueando o seu talento e aumentando o seu vazio interior. Ela detestava o vazio. Havia tantas coisas a serem vividas, e todas estavam imbuídas de tantos significados quanto a imaginação pode alcançar. Ela se recusava ao vazio. O vazio era perda de tempo. Ela queria preencher tudo, com todos os sentimentos e pensamentos que lhe fossem possíveis. Ela buscava uma completude. Algo que lhe desse uma compreensão nunca alcançada, uma compreensão que talvez lhe permitisse a verdadeira felicidade – ela supunha. E talvez estivesse certa, nunca saberemos. Cada um possui os seus próprios processos internos, e os de Leslie eram geniais e incompreensíveis. Leslie procurava um amor que transcendesse o plano físico. Ela queria sempre algo a mais. Os sentimentos nunca lhe pareciam intensos o suficiente. Talvez porque os seus sentimentos fossem muito intensos, ela sentia-se eternamente uma amante não correspondida, por mais amada que fosse. Para ela, nunca era o suficiente. Chorava sem saber por quê. Dilacerava sua alma em lágrimas de desespero inventivo, o desespero da incompreensão. Incompreensão para ela sempre representou escuridão, e ela vivera na escuridão por tempo demais. As pessoas não a compreendiam. Nunca compreenderiam.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Matadouro

Eu cresci no interior, na casa dos meus avós. Tudo muito bonito, muito calmo, muito bucólico. E eu com a alegria infantil de quem não conhece a sujeira e a miséria das cidades grandes. No máximo um passeiozinho em Arroio do Tigre ou Sobradinho, cidadezinhas bucólicas da serra gaúcha. Ir ao supermercado dos parentes do meu avô. Tudo assim. Minha avó muito simpática e boa cozinheira, meu avô trabalhador e que ia tarrafar comigo no rio à noite. Vila Tamanduá é o nome do lugar. Ainda existe, exatamente do mesmo jeito, mas não aparece no Google Maps, já procurei. Mas talvez o mais marcante daquela minha infância bucólica tenha sido o sangue. Eu sempre fui carnívoro por natureza e sempre gostei do sangue. Até hoje, como carne de gado crua sempre que posso. E que se foda a febre aftosa. O que essas pessoas urbanóides que nasceram, cresceram e sempre viveram apartamentinhos e indo aos hiper-mercados não conseguem entender é como o contato com o sangue é uma coisa linda e natural. É mágico. Minha santidade particular, o sangue. Naquela vidinha de interior, meio do mato, final dos 80, começo dos 90, meu avô tinha um irmão que era açougueiro. Na verdade ele tinha um mercadinho na Vila Tamanduá, mas o que dava lucro mesmo era o açougue. Era o único da vila, e todos aqueles descendentes de nobres alemães & italianos que por décadas derrubaram árvores & mataram onças para construir aquele paraíso no meio do nada não poderiam ficar sem o seu santo churrasquinho de todo domingo. Mas eu estava falando do meu tio-avô açougueiro. Ele tinha um matadouro. Ficava em cima de um rio, e para chegar lá ele descia por uma estradinha que passava em frente à casa dos meus avós. Era bem perto, o matadouro. Dava pra ouvir lá de casa os berros dos bois agonizantes quando eles demoravam para morrer. Como todo bom moço criado no interior, o contato com o sangue era algo normal para mim. Limpar peixes, matar galinhas. Uma vez um ganso me mordeu. Com ajuda da minha destemida avó, que capturou os bichos, eu realizei minha vingança. Com uma machadinha eu decapitei os treze gansos que haviam lá. Eu adorava ver o sangue correr. O cepo ficou encharcado. Eu me sentia um carrasco medieval. E haviam também as tradicionais carneações de porcos, que seguiam quase o mesmo processo do matadouro de bois, mas que visivelmente não provocavam o mesmo efeito psicológico em mim. Com os porcos o processo era simples. Matava-se o porco. Então abriam-no, retiravam os órgãos, esquartejavam-no, limpavam os intestinos, moíam a carne do porco & faziam lingüiça. Basicamente tiravam as tripas de dentro do porco e colocavam o porco dentro das tripas. E meu avô às vezes ia ajudar no matadouro. Ele era muito bom em tirar o couro dos bichos. Tinha uma faquinha de estimação própria para isso. E tinha um irmão, italiano e muito católico, que comia as negrinhas que iam trabalhar em sua casa e matava bois. Uma vez um boi fugiu. O meu tio-avô, popularmente conhecido nas redondezas como “Tio Chico”, foi atrás dele com um pedaço de pau. Ele bateu com aquele pau em uma das canelas do boi. O osso se quebrou e o pé ficou pendurado pela pele. E o Tio Chico fez o boi andar por quilômetros até o matadouro mancando em cima daquele osso. Era um grande cara, o Tio Chico. Um dia ele matou um cara com um dois tiros: um no meio da testa e um no coração. Sinto saudades do Tio Chico. No matadouro as coisas funcionavam assim: os peões amarravam cordas no boi – ou na vaca, dependendo da ocasião –, cordas nas quatro patas e na cabeça, e ficavam segurando. Então vinha alguém e dava uma facada no pescoço do boi, na jugular. Geralmente era o Tio Chico, ou um peão que já era experiente no negócio. Então eles esperavam o boi sangrar até a morte. Era um espetáculo lindo. Aquele sangue vermelho e quente jorrava, o piso de concreto ficava todo vermelho. Tudo muito colorido, tudo muito vivo, exceto o boi, que ia morrendo. Às vezes eu ia pelo lado do rio e via o sangue caindo como uma cachoeira vermelha, mudando a cor das águas. Mas havia alguns detalhes importantes na matança. Por exemplo: não se podia ter pena do bicho, senão ele não morria. Uma vez uma amiga da minha mãe foi assistir eles matando, e ficou com pena do boi. E o boi sangrava e sangrava e sangrava e não morria. E ela ficava olhando nos olhos do boi e o boi ficava olhando nos olhos dela. O boi sangrou até a última gota e continuou em pé. Não morria. Até que o Tio Chico enfiou a faca atrás da cabeça, na nuca, na junção do pescoço. Foi instantâneo, como se desligasse um botão, as quatro patas se arriaram e a amiga da minha mãe correu pra casa chorando. Depois que matavam o boi vinha a parte que eu considerava como uma engenharia, uma verdadeira dissecação. Eles cortavam as quatro patas e a cabeça fora. Depois enfiavam dois ganchos nas pernas traseiras e erguiam o bicho. Tinha um tipo de guindaste para içá-lo. Então eles abriam a barriga do bicho e tiravam todos os órgãos, enquanto os outros – sempre eram vários – iam tirando o couro do bicho (meu avô fazia isso, era o melhor deles). Depois disso tudo eles serravam o bicho no meio, com uma serrinha dessas manuais mesmo. Aí eles passavam trabalho. Os peões suavam, uns desistiam, outros se revezavam. Tudo parecia muito divertido. Eu pedia pra serrar, às vezes. Mas eu tinha só quatro ou cinco anos e era muito magricela. Mas eles sempre deixavam. Dois peões seguravam os pedaços do boi afastados e meu avô me erguia. Eu segurava a serra melada de sangue, era uma sensação boa, de fazer parte de alguma coisa, como se aquele sangue que estava ali unisse todos aqueles homens, nos fizesse parte de algo maior, e eu fazia força, mas a serra quase nunca se mexia. Mas quando meu avô me botava no chão de novo, todo mundo dava a maior força e diziam que tinha sido quase e que da próxima vez ia e que eu tinha que comer mais feijão. Então eu ia correndo pra casa, feliz, e pedia uma caneca de caldo de feijão para a minha avó, e ela me dava e eu tomava tudo. Tinha uma textura engraçada. Parecia sangue.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fim.

Fui-me embora pra Vila Tamanduá.
Volto em 2009.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Bailarina, Egocêntrica & Escandalosa ou Sol ou Considerações Filosóficas Acerca Do Encontro Com A Mulher Perfeita

Primeiro veio a espera. Horas, minutos, segundos. Cada um contendo em si a sua própria eternidade. Angustiante, a espera.

Incomensurável. Esta é a palavra, creio, que melhor define o conjunto de sentimentos exacerbados que convencionei chamar neste texto de: Ela.

A primeira descrição que li dela, isso muito antes do encontro, era composta por três palavras: bailarina, egocêntrica & escandalosa.

Bailarina: Que baila. Dança. Arte. Que usa o corpo como uma obra de arte. Que traduz nos movimentos do corpo os sentimentos da alma. Sentir. Bailar. Bailarina.

Egocêntrica: Que gosta de ser o centro. Sol. Centro de gravidade. Magnetismo pessoal. Força. Energia. Luz. Que ilumina. Que ama e ilumina. Que modifica. Força motriz do universo. De tudo que está ao redor. Sol. Centro. Egocêntrica.

Escandalosa: Escândalo. Chamar a atenção. Novamente centro. Necessidade leonina. Leão. Signo de fogo. Chama mais alta. Que arde. Que queima. Que, desgovernada, fere. Que, novamente, ilumina. Fogo. Força. Luz. Que é vista ao longe. Vista por todos. Sempre. Escândalo. Escandalosa.

Sempre achei curiosa essa descrição: bailarina, egocêntrica & escandalosa. Parecia muita coisa para uma só pessoa. Eu acho estranho usar o conceito de pessoa para defini-la. Embora ela seja uma pessoa, é uma pessoa na milésima potência, o tempo todo. De forma que os conceitos comumente usados não se aplicam.

Mas eu falava da espera. A nuvem de apreensão dissipou-se na escada rolante. Avistei-a. Ali. Esperando por mim num local não previamente combinado, desarmando-me completamente antes mesmo de ter me visto. Ela era linda. Aquele sorriso. Dentinhos de coelho. O sorriso que ilumina. (Novamente sol, luz, centro de gravidade.) O sorriso. O corpo que apresentava mais curvas do que eu me lembrava ou imaginara. Corpo de mulher. (Bailarina. Obra de arte em movimento.) Ela era linda, parada ali no meio da multidão que deixou de existir no momento em que a vi. Usava os mesmos brincos da foto em que Marilyn Monroe a imitava. Chamaram-me logo a atenção, os brincos. Era uma foto em que Marilyn, em um quadro à esquerda, imitava a pose dela, à direita. As opiniões foram unânimes: Marilyn não chegava aos pés dela. Ela usava os brincos da foto com Marilyn. E o cabelo em cachos desgrenhados que emoldurava o seu rosto tal qual o mais belo quadro que deveria ter sido pintado. Repito, ela era linda. E macia. O toque da sua pele. Macia.

(Tenho que fazer um parêntese para informar que é impossível descrevê-la. Indubitavelmente a sua verdadeira natureza é incomensurável e indescritível. Pela abundância de palavras com o prefixo in, o leitor já pode concluir que seria inútil continuar. O que eu retrato aqui, sob o conceito de Ela, é apenas a pequena parte que me foi possível apreender/compreender de tudo o que ela, de fato, é.)

Sentamos em um café semi-deserto. Dois capuccinos. Com chantilly. Ela me explicava, orgulhosa, a técnica para se comer o chantilly sem transformar o café num vulcão. Eu adorava o timbre de voz dela. Era alto e meio rouco. Uma vez eu falava com ela ao telefone, quando disse-lhe que ela tinha voz de quem passava o dia inteiro gritando. (Escandalosa.) Mas no café ela não gritava. Apenas falava em ritmo acelerado, quase compulsivo. Falava. Falava com as mãos. Empoleirada na cadeira – ficava ainda mais linda sentada nessas posições estranhas falando descontroladamente – precisava de um grande espaço à sua volta para movimentar mãos e braços em uma verdadeira dança (bailarina) que acompanhava o ritmo da fala. Certa vez conversávamos sobre uma coreografia que ela estava criando. Ela angustiava-se por não conseguir entender de onde vinham aqueles movimentos. Deveriam ser lógicos, racionais, ela argumentava comigo. Eu sabia que eles jamais seriam. (Movimento, dança, arte, reflexo da alma.) Acho que depois ela também descobriu. Mas ela criava coreografias lindas ali, empoleirada em uma cadeira num café semi-deserto. Ela dançava com braços e mãos enquanto falava descontroladamente sobre si mesma. (Egocêntrica.) Sempre muito agitada. Suas mãos pequenas e macias, muito bem desenhadas, bailavam no ar formando desenhos mil. Eu não podia prestar atenção. O que ela dizia era sempre mais importante do que a obra de arte em movimento que era ela. E haviam os olhos. De um azul muito claro. Olhos muito profundos. Eu tinha medo. Tentava evitar olhares diretos. Disfarçava, dissimulava. Procurava olhar no fundo dos seus olhos quando ela se perdia em si mesma e esquecia que eu estava ali. Quando ela olhava de volta, eu desviava o olhar. Covardia. Medo. Não sei bem de quê. Mais tarde, na rua, em meio à multidão e ao caos porto-alegrense – que também deixavam de existir na presença dela –, eu de óculos-escuros – covarde – pude olhá-la no fundo dos olhos enquanto ela falava comigo. Não sei se ela me via. Se era uma frágil inútil ridícula proteção. No fundo, não adiantava de nada mesmo. Ela já conhecia a minha alma.

Ao deixar-me abandonado no meio de Porto Alegre, ela apontava braços e mãos nas mais variadas direções, alucinada e frenética, meio por pressa, meio por preocupação, meio por desorientação. Eu sorria. Ela era linda. Ela era linda e não existia mais ninguém. Agora também não existia mais a falsa imagem, a ilusão de quem era ela. Agora só havia ela, parada ali, à minha frente, cabelos ao vento, corpo cheio de curvas e a palavra “Liberdade” tatuada na alma.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

...

No fundo nós não passamos de bárbaros travestidos de homens civilizados.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Confusão

Será que eu sou incapaz de sentir amor? Eu era fraco, covarde, idealista & romântico. Amava sem medidas, mendigava o carinho e a atenção dos outros. Mas só sofri e me machuquei com isso. Então cresci e me tornei cético, cínico & amargo. Desaprendi a amar e a acrditar nas pessoas. Criei uma couraça, uma armadura. No fundo, é apenas outra forma de fraqueza, um pouco mais rebuscada. E pior, eu diria. O fraco que ama e se decepciona e sofre tem seus méritos, pois teve coragem de abrir o seu coração e tentar. Eu já fui assim. Hoje tenho medo. Já são muitas cicatrizes. O corpo e a mente enfraqueceram. Já não suportam mais os baques de outrora. Uma ilusão, como aquelas de antigamente, seria muito perigosa. Hoje eu não suportaria uma queda daquelas. Então a hipocrisia. Afastando a tudo & a todos. Uma armadura impenetrável. Covardia. Proteção. Sobrevivência. É muito mais fácil assim. Menos perigoso. Só decepção e tédio. Decepção comigo mesmo e tédio com o mundo sem amores intensos. Tédio com o mundo que eu escolhi pra mim - por covardia. Me sinto fraco. Escolhas... tudo são escolhas. É impossível saber qual a correta. No fundo não é uma questão de certo ou errado, trata-se de escolher o que se quer pra si. E muitas vezes temos que escolher mesmo sem saber. Um tiro no escuro. E eu sempre tive medo do escuro. Daí as escolhas por covardia. Armadura. Proteção. Auto-anulação. Medo. Hipocrisia. Fingindo ser o mais forte e negando o amor por medo, dizendo ser por coragem. Fica vazio. Fica tudo vazio. Por dentro e por fora. Eu e o mundo. Nada mais faz sentido. É como se eu estivesse assistindo um filme japonês abstrato sem legendas. O inconsciente captura, mas eu não compreendo. Só consigo sentir, e o sentimento puro, sem uma explicação racional, confunde - enlouquece. Enlouquece. Enlouquece...

Saudosismo argentino

Eu sinto falta de Buenos Aires. Muita falta. Hoje cortei o dedo e estou nostálgico. Queria andar de novo pela Calle Florida. Pegar o metrô, descer na Estación San Juan e subir por aquelas escadas rolantes de madeira que ficam estalando. Ir jantar no Café Takura e depois ir dormir naquele albergue em San Telmo. De madrugada eu poderia levantar e passear pela 9 de Julho tomando uma cerveja de um litro. Sinto saudades de falar espanhol. De pedir para explicar ou falar mais devagar. Queria deitar no gramado da Plaza San Martín. Nostalgia que às vezes me dá...

Elevador

Entrei no elevador e senti o perfume de uma mulher, forte e adocicado. Cheiro de festa, pensei. Cheiro de um tempo onde eu acreditava em muita coisa em que não acredito mais. Nostalgia. O perfume. A mulher. O amor.

A Arte de Escrever

Write it's something spiritual. Escrever é uma arte. Aprender a escrever é algo mágico. Porém, descobrir o seu próprio estilo em um mundo onde todos os estilos já foram criados é algo muito difícil. Tarefa árdua. Escrever é tarefa árdua. Principalmente porque não se pode agradar à todos. Já é de extrema dificuldade agradar alguns. Dear God, please help me. Help me write. Help me live. Help me die.