segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Caio F.

"Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada “impulso vital”. Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te surpreenderás pensando algo assim como “estou contente oura vez”. Ou simplesmente “continuo”, porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como “sempre” ou “nunca”. Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim – nós, não. Contidamente, continuamos. E substituímos expressões fatais como “não resistirei” por outras mais mansas, como “sei que vai passar”. Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.

Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente – e não importa – essa coisa que chamarás, com cuidado, de “uma ausência”. E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.

Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás – aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na lagartixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.

Ficou tão longe o tempo das caudas decepadas das lagartixas, tão longe o tempo dos círculos de fogo em torno dos escorpiões, longe o tempo do sal sobre as lesmas, o tempo dos espinhos no traseiro das formigas, da pedra no peito dos passarinhos. Acendendo um cigarro, pensarás com ironia na lei do retorno. “Aqui se faz, aqui se paga!” – repete uma avó implacável na memória.

E agora: como se houvesse um deus menino, igual ao que foste naquele tempo longe que ficou, decepando cotidianamente a tua cauda (para que a regeneres), criando círculos de fogo em torno de teu corpo (para que te mates), gotejando lentamente o sal sobre tua pele (para que te dissolvas), cravando-te espinhos (para que te contorças) e procurando-te com o bodoque e a pedra afiada (para que te esvaias em sangue) no meio desse mato de palavras onde procuras disfarçar teu medo.

Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada mas tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.

Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
– ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga, mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca..."

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

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O meu desgosto pela vida é contagioso.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Carta ao Zézim (por Caio F.)

Porque quando a dúvida assola, é sempre bom lembrar.

"Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.

Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.

E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.

Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido."

Café

Tomo o café amargo, não, amargo não, doce, muito doce, tomo o café muito doce em cima do gozo de gosto e cheiro muito fortes, e quase esqueço o sabor dela.

sobre a indiferença

A indiferença é um veneno. Ela ela corrói, destrói tudo o que há por dentro, até que aquilo que um dia foi o teu ser seja apenas uma casca vazia, oca. Até não sobrar nada. A indiferença é uma pequena morte - não tão pequena assim. A indiferença é um fim. O fim de tudo aquilo que um dia foste tu. A indiferença consome. Como o fogo. Até só restarem cinzas.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Um história sobre traças

Eu estava sentado na privada observando as traças. Foi assim que aconteceu. Exatamente assim. Eu sentado sozinho – solitário – no meio daquele banheiro de azulejos muito claros e traças andando pelo chão. Aqui em casa têm muitas traças, você sabe. Mas não são daquelas traças compridinhas, que vivem nos armários e comem as roupas. As traças aqui de casa são diferentes. Elas têm a forma de um losango, e são levemente duras. Há uma espécie de verme dentro do losango, uma minhoquinha – viste, o losango levemente duro é só uma carapaça, como um caramujo –, e essa minhoquinha, às vezes, ao se deparar com um obstáculo, some para dentro do losango levemente duro, e algum tempo depois ela aparece do outro lado, e começa a andar para onde antes seria atrás. Tu não achas isso genial? Eu passei muito tempo observando estas traças aqui de casa. Elas vivem no meio da poeira. E aqui em casa sempre teve tanta poeira, você sabe. Não que eu seja relapso com a limpeza – eu sempre fui chato com limpeza, você lembra? –, mas há muita poeira. E traças. Antes eu achava que as traças nasciam da poeira – talvez nasçam –, mas agora eu acho que elas é que tecem a poeira, assim como as aranhas tecem as teias. Sempre há várias traças losangulares perto daquelas bolas de poeira pelo chão. Eu me admiro do gato ainda não ter comido nenhuma. Ah, não te contei? Agora eu tenho um gato. O nome dele é Morisco – você se lembra do El Morisco, o baixinho mexicano? Mas deixa eu te contar, no começo, quando o gato veio pra cá, bem novinho, ninguém sabia se era gato ou gata, então ninguém sabia se chamava de Morisco ou Morisca. Foi incrível, cada pessoa que chegava aqui dizia uma coisa diferente. O coitado do gato trocou de sexo umas cinco vezes. No pet shop até colocaram fitinhas cor-de-rosa nas orelhas dele, acredita? Mas agora ele cresceu e definiu-se: é, de fato, um gato. El Morisco. E não corre atrás das traças. É bem preguiçoso. Dorme boa parte do dia e da noite. Mas eu tava te contando do momento em que eu estava sentado na privada observando as traças. Foi aí que eu lembrei. E essa lembrança me trouxe tantas outras coisas, arrastou, como uma correnteza, uma série de outras lembranças que eu não queria lembrar – ou queria? Mas o fato de lembrar fez com que eu sentisse de novo, latejante, como uma velha ferida de guerra prenunciando um temporal. Eu escancarei a janela e abri os dois braços bem altos em direção ao céu, eu queria aquele temporal todo pra mim, aquela ventania me enregelando, aquela chuva me molhando, aquela energia de renovação. Você se lembra quando eu, bêbado, saí pra caminhar no temporal, pra absorver as energias? Caminhei meia hora embaixo daquela chuva torrencial e depois passei um mês doente. Quase peguei uma pneumonia. Você se lembra? Eu não tinha jeito mesmo. Sempre teimoso e cabeça-dura. Meu pai me chamava de cabeça-de-martelo – uma das únicas coisas que eu me lembro dele –, vai ver era por isso. Mas daí, durante o temporal, tudo foi se agravando. A tarde ficou cinza e aquela lembrança foi latejando cada vez mais, como se ainda fosse um fato – e não era? Sabe, eu considero essa distância um fato, um acontecimento, quase um objeto, algo empírico, que eu quase posso tocar, essa distância entre nós. Eu aqui, com traças losangulares & El Morisco. Você aí, distante. A lembrança inicial, latejante, que causou tudo isso, não era uma lembrança assim tão importante. Era corriqueira até, dessas que você tem milhares iguais durante a vida, e não dá muita bola. Poderia ter sido a lembrança de um fim de semana chuvoso, entre as cobertas, assistindo filmes e comendo chocolates; ou poderia ter sido a lembrança de uma viajem, talvez a praia, talvez a serra, a Argentina ou o Uruguai; ou poderia ser a lembrança de alguma noite intensa de sexo desvairado, blues, rosas, corselet & cinta-liga, morangos. Mas foi uma lembrança simples, singela até, comum. Me lembrei de você dormindo. Quantas noites dormi com você, foram meses – anos talvez? Mas me lembrei de você dormindo e aquilo criou um abismo tempestuoso dentro de mim. Pisei na traças, afoguei-as com álcool. Joguei o gato para longe da minha cama, com raiva, nem me lembro mais o seu nome – seria algo espanhol? Mas depois tudo se acalmou, e a compreensão veio lenta, como a calmaria após o temporal, quase ao mesmo tempo. Você me fazia falta. Era isso. Esse era o abismo. As traças, El Morisco, o temporal, tudo era distração. Eu não percebia, não queria perceber, mas você me fazia falta. E essa falta era latejante, como velha ferida de guerra em dia de chuva. Talvez fosse isso: sua falta era uma ferida. Em algum lugar do peito, por baixo das costelas, uma ferida que latejava em descompasso com a pulsação que havia ali dentro. Quis te trazer de volta. De alguma forma assim meio incoerente, inconseqüente – como eu sempre fui. Mas já era tarde. As traças estavam mortas, o temporal passara & El Morisco me odiava. E você não voltaria nunca mais.