quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ensaio sobre a loucura

A cafeteira vomitava lenta as gotas de café. A noite se iniciava como tantas outras. O barulho da cafeteira, o cheiro do café, um livro no colo e a solidão. Eu sentia algo se formando. O que seria? Pensamentos vagos? Delírios, saudades, ausências? De tudo um pouco, creio eu. Tantas saudades, tantas ausências... tantos delírios. A loucura tomando forma dentro de mim, no meio do vazio e da solidão, construindo a si própria de matéria escura, de mim, do que há dentro de mim e é indizível, incompreensível até para mim mesmo. A loucura crescendo, se alimentando das saudades e das ausências, e criando os delírios, as ilusões. E eu que chegara a pensar que o tempo das ilusões havia passado. Derradeiro engano. Não passa, nunca. Vem e vai, em ondas, o tempo das ilusões. Não sei dizer se mais dão esperança ou mais fazem sofrer, as ilusões – e não seria a mesma coisa? Tão complicado tentar compreender a si mesmo. Compreender os movimentos difusos do caos que se desenrola no interior da mente, do coração, da alma – e não seria tudo a mesma coisa? Tantas perguntas sem respostas. Rapsódias sem sentido. Um teatro encenado por mim para mim mesmo. Delírios. Ilusões.

O que acontece? O que acontece de verdade? Na noite fria muitas dúvidas me assolam. O café auxilia no combate contra o sono que me ataca violento. Cansaço incrustado nos ossos. De desilusões, o cansaço. Provavelmente. Devia ter febre. Gostaria de ter febre. Talvez os delírios fizessem sentido na febre. Mas estou são. Não, estou saudável, não são; nunca são. A sanidade me abandonou há... na verdade eu não me lembro de algum dia ter me orientado pela sanidade. Será o meu fim? Ter me dado conta da minha loucura e morrer então, alucinado e demente, ciente de que nada me faz sentido. Talvez. Não, não posso morrer ainda. Não me sinto pronto para a morte, embora pressinta que ela me espera de braços abertos – talvez logo ali na esquina. Hoje meu braço esquerdo estava dormente. Podia ver as cicatrizes no pulso de pele pálida. Talvez eu tenha um infarto. Mas não era hora de pensar nisso. No que eu estava pensando mesmo?

Na vida. No futuro. Em mim. Na noite fria. Não seria tudo a mesma coisa? Não seria tudo ilusão – eu inclusive? Impossível dizer. Todo esse cansaço, toda essa escuridão disforme... tudo. Não sei, e tenho impressão de que não saberei nunca. Sinto-me estúpido, incapaz – tantas respostas permanentemente fora do meu alcance. Será mesmo isso a vida? Assim, incerta, inevitável, com vontade própria? Tão complicada, tão contraditória... a vida.

Incenso de sândalo, plantas quase murchas, solidão. Eu me construo em meio à solidão. É o único meio, a única forma. Interferências externas são apenas distrações. Eu só me conheço – e reconheço – quando estou só. A solidão me constitui como parte essencial do meu ser. Eu sou a solidão e a solidão sou eu. No mundo exterior a mim, eu sou apenas um reflexo de mim mesmo, nunca o verdadeiro eu. Assim como todos, assim como ninguém.

A lógica não se aplica nesses casos – em casos como o meu. A lógica nunca fez parte da minha vida, e quando fez, era apenas ilusão, disfarçando uma loucura ainda maior do que aquela em que eu vivia. A minha razão sempre esteve a serviço da minha loucura, do meu caos interior, ou seja: sempre esteve contra mim – como tudo, como todos, como eu mesmo, sempre.

Era como uma dança, eu e a loucura. Não, a loucura era a música, era ela quem ditava o ritmo dos passos, a direção a tomar; eu apenas acompanhava, era conduzido como uma donzela na noite de núpcias, até que a dor vinha e o sangue jorrava – era inevitável, o sacrifício, a minha loucura sempre me sacrificando. Sangue de virgens e nanquim, e a sombra da loucura como a lâmina de uma guilhotina pairando sobre a minha cabeça, sempre, desde sempre e para sempre – eterna condenação.