sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Escuridão (da série "Estéticos")

A escuridão como uma figura assimétrica, perfeita. Como salvação. Redenção. Bem e mal em um único corpo difuso. Yin e yang em um apenas, completo, sem linhas limites definições. A escuridão como o perfeito absoluto a ser alcançado. A compreensão total na falta de sentido. O caos divino. A ilusão suprema. A última cortina caindo, desvelando-se. O negror. A cegueira. A inutilidade dos sentidos – de todos eles. O sentir-se completamente perdido; em um caminho sem retorno. A escuridão – interna e externa. O todo. O nada. A ilusão. O eu. A escuridão. Um ciclo. Um círculo. Perfeito. Tudo sempre perfeito incompreensível inalcançável. Os delírios. A morte – mais uma. O fim. O começo. O eterno retorno. A eterna agonia. O peso. A leveza. A fuga. A impossibilidade da fuga. O desespero. A calma. As tentativas – todas vãs. O nada. O tudo. A escuridão. Samsara.

Quebra-Cabeça ou Interioridade (da série "Estéticos")

Tudo começa com um solavanco – algo violento. No fim, é a violência que move o mundo – e as pessoas. Pois aquele algo violento provoca uma desorganização interna, como se houvesse um quebra-cabeça dentro dele, e este fosse subitamente, bruscamente desmontado. A partir daí ele não compreenderia mais o mundo, nem a si mesmo. Aquilo que havia dentro dele estava desmontado, e agora o que restava era caos e uma antiga sensação de organização, de pertencimento. Pertencimento? Sim, pertencimento. Havia uma certa compreensão do mundo e de si mesmo que o pertencera – e agora o abandonara. Então agora ele necessitava começar novamente, montar o seu quebra-cabeça interior. Mas não conseguia. Estranhava as peças como se nunca as houvera visto. E a compreensão não vinha. Encontrava-se preso em um estranhamento que parecia perpétuo. Não havia fuga. Ele nem mesmo era capaz de imaginar uma fuga. Estava totalmente – mortalmente – desarmado; desconcertado [desmontado]. Recomeçava. O que recomeçava? Recomeçava a si mesmo. Como se fosse Deus, e Adão, e O Início dos Tempos – todos ele; todos nele. No princípio – a primeira peça – havia apenas a escuridão. Depois – a segunda – havia ele [seria Deus ou Adão?]. Depois havia a sua vontade – a terceira. Depois tudo era caos. Não conseguia passar destas três peças iniciais. Ele, parado em meio à escuridão, com vontade de. De quê? De compreender. Compreender o quê? Tudo. Recuperar a compreensão que acreditava ter possuído um dia – talvez segundos atrás [o tempo não era importante – ou era?]. Mas ao que parecia, o solavanco inicial havia causado um mal irreparável. Aquilo que fora desmontado – a compreensão – jamais seria remontado novamente. Ele teria vislumbres relances memórias em uma peça ou outra, mas a cena completa estava perdida para sempre. Nunca mais a compreensão. A roda gira sempre em frente, e não importa quantas vezes gire em torno de si, o caminho jamais será o mesmo. Ele perdera a si próprio na total desorientação, e seguia girando. Precisava então, para sobreviver, montar um novo quebra-cabeça. Construir peça por peça; cena a cena. Ou entrar em um rio e morrer. Ou tomar arsênico. Ou escrever. Ou pensar. Ou amar. Ou.

Nosso Amor

Estava deitado ouvindo Arcade Fire pensando no que acontecia. De fato, acontecia muita coisa, mas eu não conseguia dispô-las em uma organização lógica em minha mente, afim de uma análise um pouco mais elaborada. Tentava: primeiramente havia um amor – ou algo que eu acreditava ser um amor; ou, em última instância, algo que eu convencionava chamar de amor. Aquilo que havia, o objeto ontológico de análise, aquilo que prescindia o nome “amor”, sem o nome não era nada – apesar de ser tudo. Então eu pensava primeiramente sobre o amor. Mas não sobre o sentimento universal grandiloqüente que todos convencionamos chamar de amor – eu pensava em um amor específico [eu e ela]. Logo, eu pensava nela. Mas novamente, não nela enquanto ela mesma, mas sim na minha visão dela. Como podem perceber, é tudo uma questão de semiótica, problemas lingüísticos, significante & significado. Mas o fato é que a partir do amor [aquele específico] e dela [aquela minha visão dela], eu definia a percepção que eu tinha de mim mesmo [ou uma delas – talvez a principal]. Assim eu me definia: eu era parte integrante e [talvez] indivisível do amor que havia entre eu e ela. É claro que este prisma apresenta vários problemas. Ver a si mesmo sob uma perspectiva que não é única e exclusivamente interna [e não são todas?] é sempre algo problemático. Mas eu partia do pressuposto que ela [parte integrante e indivisível do nosso amor, logo, de mim mesmo] também visse a si mesma, e ao nosso amor e, por conseqüência, a mim, sob o mesmo prisma – o que permitiria uma comunicação mais verdadeira entre nós. Mas veja bem, tudo isso acontece dentro da minha percepção interna [como um delírio, alucinação], podendo não significar nada fora deste contexto e, em último caso, ser uma completa farsa – uma mentira. Logo, não é difícil perceber que toda esta minha divagação é inútil. Eu deveria apagar a luz, desligar o som, deitar a cabeça no travesseiro e dormir. Mas sei que não farei isso por diversos motivos: 1) Eu não durmo à noite. 2) Este não é o meu travesseiro. 3) Esta não é minha cama. 4) Esta não é minha casa. 5) Eu continuo pensando nela e no nosso amor. O que é engraçado, pois o conceito de “nosso amor” remete à idéia de Amor Romântico Idealizado, o que não é o caso. O “nosso amor” é mais como uma guerra – uma eterna disputa de poder; um cabo de guerra metafísico. O “nosso amor” exige violência e disputa. Amamo-nos na mesma medida em que odiamo-nos, e desejamos viver um para o outro na mesma medida em que desejamos matarmo-nos. O “nosso amor” possui um duplo; um lado negro. Vida e morte. Eu e ela. O “nosso amor” doentio. Como um câncer, uma metástase espiritual devorando-nos mutuamente, simetricamente, igualmente – um amor duvidoso de si mesmo, duvidoso de nós [tão suspeitosos e duvidosos que sempre fomos]. Este amor deformado como nosso filho, disforme em seu esplendor – cego e carente. E nós o alimentando com beijos e violências. Nosso filho. “Nosso amor”. Nossa vida perdida nesta prisão de estarmos eternamente ligados um ao outro – estas algemas imaginárias, que do prazer passam à dor, do amor ao ódio; eternamente ligado nesta união maldita. Eu adormecia pensando nela e no “nosso amor”. Ela adormecia longe de mim. Eu sentia sua respiração no sono. Estava morto. Estava enlouquecendo. Estava amando. Estava odiando. Estava preso. Preso. Preso. Eternamente preso...

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Inexorabilidade

O tempo, sempre traiçoeiro e enganoso. O que seria o tempo, na verdade? Apenas mais uma ilusão da nossa mente caótica, ou algo, como dizem, inexorável? Acho engraçada essa idéia de inexorabilidade. É como uma sina. Não se pode fugir dela. Isso significa que não se pode fugir do tempo. O que na verdade é uma mentira. Não uma mentira no sentido clássico; mais como uma inverdade. Uma inverdade, pois cada um vive em seu próprio tempo, têm suas próprias percepções da realidade, se relaciona com o mundo de uma forma diferente. Então creio que é correto dizer que cada um possui o seu próprio tempo, e que esta inexorabilidade é muito relativa. A nossa maior sina é relativa – depende de uma interpretação própria. Cronos é apenas uma pintura antiga. O relógio é apenas uma máquina. O que mede verdadeiramente o nosso tempo é a forma como vivenciamos a realidade. E não digo isso num sentido filosófico-abstrato, mas no sentido real. O tempo é relativo. É uma construção.

Foi assim. Eu estava sentado pensando sobre o tempo quando ela chegou. Largou suas coisas sobre a cadeira, sobre a mesa, sobre a outra cadeira – a capacidade feminina de sempre carregar mil coisas que não usarão nunca. Conversava, falava sozinha – ou comigo – de outro cômodo. Era barulhenta. Minha paz estava suspensa, e eu sabia que só seria restaurada no momento exato em que ela fosse dormir, reclamando que eu não iria com ela.

Tínhamos horários diferentes. Ela trabalhava o dia inteiro e estudava à noite. Eu ia dormir ao raiar do dia, acordava na metade da tarde. Passava a tarde, a noite e a madrugada pensando, lendo, escrevendo; tentando ser grandioso e artístico. Olhando agora, creio que talvez tenha sido justamente esta impossibilidade de estarmos sempre juntos, compartilhando vivências, que tenha feito nosso relacionamento durar tanto tempo – e da forma mais saudável que era possível entre nós.

Esse saudável incluía, em primeiro lugar, a não-traição. Eu poderia dizer fidelidade, ao invés de não-traição, mas o fato é que não seria apropriado. Todas as milhares de tentativas anteriores de relacionamentos entre nós haviam fracassado justamente pelas traições, de forma que trair-se era o normal para nós. Não éramos pessoas confiáveis – não confiávamos um no outro. Por isso a não-traição como premissa básica de um novo início.

Ela tinha necessidade da minha presença constante e contínua em sua vida. Eu tinha necessidade de solidão. E liberdade. Tinha necessidade de amizades e vinhos. Ela tinha necessidade de mim. Isso gerava um claro desequilíbrio. À noite, a sua necessidade absoluta de mim acabava com o meu tesão. Eu disfarçava. Ia escrever, ler, assistir um filme. Qualquer coisa que me distraísse da necessidade que ela tinha de mim. Ela me sugava. Drenava minha alma. Era uma parasita. Eu sentia isso ao escrever. Quando passava muito tempo com ela, os textos saíam vazios. Ela me sugava.

Andava em volta de mim, tomava goles da minha taça de vinho, conversava coisas desimportantes, fazia convites insinuantes para irmos para cama. No fundo, eu só queria que ela me deixasse em paz. Nosso relacionamento teria funcionado de uma forma muito mais eficaz se ela me deixasse em paz. Mas ela não deixava. Não conseguia. Não podia. Eu era indiferente. Tratava-a com grosseria. Ela se magoava. Eu fingia não me importar, mas a verdade é que eu não tinha outra alternativa – precisava afastá-la de qualquer jeito. Ela me fazia mal.

Por fim, ela dormia. E eu continuava mergulhado na minha solidão quebrada. Mesmo dormindo, eu sentia a sua presença no cômodo ao lado. Eu não estava sozinho. Eu não conseguia me concentrar. E isso me deixava em um permanente estado de improdutiva irritação. Ao longo dos anos fui aprendendo a odiá-la por isso. Odiá-la por me amar, odiá-la por macular a minha solidão sagrada. Odiei-a profundamente por tentar imiscuir-se à minha pessoa.

Ela era uma flor venenosa, planta carnívora – embora não fosse tão linda assim. Ela sufocava, asfixiava, envenenava. Por vezes, quis sentá-la em meu colo, olhar no fundo dos seus olhos verdes e, com um sorriso, dizer: eu te odeio. E eu vou te matar, antes que tu me mates. Eu não fazia, não dizia – embora a vontade fosse permanente. Sinceramente, nunca consegui descobrir qual era a coisa odiosa e pegajosa que nos mantinha juntos. Aquele suposto amor era tudo, menos amor em si. Era paixão, posse, ciúme, violência, raiva, ódio. Tudo menos amor. Mas não conseguíamos livrarmo-nos um do outro. Como uma maldição. Como uma sina. Como o tempo: inexorável. Permanecíamos naquela relação doentia como se não fosse acabar nunca; como se existisse desde o início dos tempos. Havia encontros e desencontros; brigas e sexo; mas continuávamos, permanecíamos, unidos pelo ódio amoroso, amor odioso, ilusão inexorável, impermeável. Não havia explicação. Eu só queria fugir dela para sempre. Eu só queria matá-la.

Ela agia como se nada acontecesse, como se ambos nos amássemos profundamente – mesmo sabendo do ódio recíproco, escuro e violento, que alimentávamos juntos a cada falsa jura de amor. Dizíamos “eu te amo” dormindo. Sonhávamos sonhos de ódio e liberdade. Estávamos matando-nos mutuamente.

Ela não se importava. Ao menos não parecia se importar. Já estava acostumada a este jeito de sermos um com o outro – venenosos, ardidos, maus. A crueldade como única salvação; como redenção. Mas não é fácil ser cruel com palavras de amor. Exige muita prática e talento. Machucar com um “eu te amo” é uma arte para mestres, uns poucos escolhidos. E nós éramos escolhidos; sagrados e escuros. E nos odiávamos com muito amor, nos amávamos com muito ódio. Creio que no fundo os sentimentos se misturavam e acabavam virando uma coisa só, um ódioamor ou amoródio, algo que nos matava e nos permitia viver ao mesmo tempo; algo que secou-nos por dentro.

Eu sempre a culpei pela morte do eu romântico. No fim, eu estava certo. Ela era a morte dos sentimentos para mim. Pelo menos dos bons. Sobrava apenas aquele amoródio infernal que me torturava noite após noite. Teria sido melhor se morresse – se ambos morrêssemos. Teria sido menos doloroso. Teria sido mais fácil. Mas sobrevivi, como uma ironia, talvez única e exclusivamente para contar esta história. Sobrevivi; sobrevivemos – monstruosos.

Por vezes pensava que não éramos mais humanos, e tentava em vão buscar na memória o momento exato onde a humanidade se perdeu, onde aquelas duas pessoas que nós éramos morreram e transformaram-se nestas criaturas abomináveis que se amorodiavam mutuamente. Nunca consegui lembrar. Não havia resposta. Não havia volta. Estávamos condenados. Condenados um ao outro.

Mas eu queria fugir.

Creio que uma das coisas mais engraçadas do ser humano é a liberdade, e como ela é relativa. A liberdade, na verdade, não existe – ilusão inexorável; sina. Todos são tecnicamente livres para fazer/pensar o que quiserem, mas o fazer/pensar e, mais a fundo, o próprio ato de ser já está atrelado a uma série de, digamos, regras predeterminadas. O ato de ser já está previamente condicionado a um tipo de ser. O que foge a isso é ignorado ou eliminado. A liberdade, vista de fora, é algo realmente muito engraçado. Ou melhor: seria (já que ninguém realmente a vê de fora; todos estão imersos nela).

Pensando sobre liberdade eu percebi que não poderia fugir dela. Percebi que como criaturas não-humanas era justamente este amoródio o que nos mantinha vivos – que não havia fuga possível. Ou pelo menos era nisso que eu acreditava, e pelo fato de eu acreditar tornava-se real – a minha realidade inexorável, moldada ao meu bel-desprazer (o prazer apenas pelo prazer não existia para mim – ou existia?).

Decidi continuar com ela então. Não creio que se possa chamar efetivamente de decisão, pois eu não tinha escolha; mas convencionei chamar de decisão – talvez para não sentir-me tão impotente diante da inexorabilidade dos fatos, do mundo. Continuávamos então, até a nossa próxima morte. Não soubera o que haveria além da humanidade e do amor – tivera curiosidade e medo. Estes sentimentos voltavam agora, pressentindo o que surgiria após esta não-humanidade monstruosa e seu amoródio. Tinha vontades suicidas de matá-la ou deixá-la, pois sabia que assim também morreria – sentia que éramos um organismo uno, ela, meu duplo, meu gêmeo siamês na monstruosidade –, e talvez descobrisse (novamente) o que havia depois.

Ela, creio, tinha medo. Ou talvez não fosse medo. Talvez estivesse simplesmente viciada em mim; viciada em nosso amoródio dilacerante. Ela não podia mais evitar, não podia mais controlar-se: era uma dependência químico-espiritual que ela desenvolvera de mim. Uma dependência que eu não desenvolvera – ou que pelo menos acreditava não ter desenvolvido, o que a tornava inexistente para mim. Mas isso só fazia aumentar a vontade suicida que eu tinha de matá-la. Ela, cada vez mais próxima a mim; eu, cada vez mais distante dela. A morte, cada vez mais íntima de nós.

Eu só queria me libertar, mas parecia não ser possível. Eu implorava para todos os deuses que conhecia, mas os deuses atendem apenas a humanos, e eu era desumano. Estava no limbo. Com ela. Sem fuga. Sem vida. Sem sentimentos. Uma condenação muito mais pesada do que eu jamais merecera. Queria, com todas as forças, morrer.

Eu via a escuridão como uma vitória, mas não desejava que esta escuridão fosse compartilhada – eu a queria só, una, indivisível em mim. Mas eu era ela e era também o nosso amoródio como uma força elemental que une um átomo a outro e forma uma matéria viva pulsante repugnante nós eu e ela em mim. Eu não queria nada disso. Ela talvez quisesse e por isso eu a odiava – mas não sem amor.

Mas vamos voltar ao ponto de partida, eu quero voltar ao ponto de partida, sinto tudo mal-esclarecido, como uma pintura desfocada, borrões no lugar dos rostos. Por incrível que pareça, esta arte ambígua nunca me atraiu. Na verdade atraiu, mas ela é inútil agora que quero deixar as coisas mais claras possíveis; límpidas, cristalinas. Quero voltar ao começo, onde havíamos apenas eu, ela, antes do amoródio, apenas nós dois como uma página em branco. Então imagine que eu estou começando a contar de uma nova forma, agora, assim:

No início, nós nos amávamos. Sim, era amor. Talvez tenha sido o meu primeiro e único. Quanto a ela, não sei – mas acho que também. Mas o fato é que o amor só dura enquanto for perfeito. A partir do momento em que ele se quebra, nunca mais será amor – pelo menos não entre as duas pessoas envolvidas. Insistir neste amor quebrado, despedaçado, destruído, só levará a outros sentimentos – geralmente os piores possíveis – e a outro tipo de ações – geralmente aquelas que causam desgraças (para o corpo e para a alma). De fato, o amor se quebrou, e a nossa insistência naquilo que não existia mais nos trouxe às já citas desgraças para o corpo e para a alma – e nos transformou no que somos agora – criaturas do amoródio. Não creio ser discutível se isto era evitável, se foi uma escolha, ou se, novamente, era algo inexorável. Simplesmente, a esta altura, não importa mais. Agora tudo é inexorável. Todas as escolhas, sem escolha – como sempre foram. O fato é que houve um início, e eu acreditei – nós acreditamos. Mas o que houve depois foi o que importou, e sobreviveu, e sobreviveu-nos. Novamente, não sei se isto é bom ou ruim – eximo-me aqui de qualquer juízo de valor.

O fato é que depois do amor, e do desamor, e da vida, e da morte, houve o momento, ou melhor, o período, pois não foi um momento apenas, foram eras, embora seja tudo a mesma coisa, senti-me preso em um único momento durante todas estas eras, mas houve o período onde decidimos que nos amaríamos sem amor, nos odiaríamos sem ódio, viveríamos sem vida, morreríamos sem morte.

Veio-me um pensamento agora: não sei por que conto esta história. Ela não servirá de nada, não salvará ninguém. Aqueles que estão perdidos já não possuem mais volta – e são todos. O calendário maya, 2012, os quatro cavaleiros do apocalipse. Tudo bobagem. Os apocalipses são internos. E todos já aconteceram. Agora é só questão de tempo. Pode ser amanhã. Ou daqui a 10.000 anos. Pode ser em um momento ou para sempre. Todos estão mortos. Não há salvação. O tempo não existe, é ilusão. As pessoas igualmente. Nós dois, com o nosso amoródio, somos uma transição. Não somos os únicos. Há milhares. Escondidos; disfarçados; camuflados. Somos o futuro e o passado. Somos a única esperança desesperançada de vida e morte e tudo e nada. Somos universo e vazio – todos nós. Não há salvação. O destino é inexorável.

A última lágrima cai. Quis apenas contar esta história antes que tudo se faça escuridão; antes que tudo acabe – embora nada nunca acaba: nem mesmo nós; nem nosso amoródio. Um dia acreditei – acreditamos – que poderia dar certo. Deus é uma criança brincando com uma fazenda de formigas. Não há ordem, apenas caos – o fogo que consome e a água que afoga e a beleza (agora sim, verdadeiramente) inexorável. O caos é belo. Nós dois não somos nada. Deus não existe. O universo é ilusão. A vida é inexorável. E a morte. E o tudo. E o nada.

Lembro-me apenas disto: resta, no fim de tudo, apenas uma voz na escuridão. Uma voz cheia de ódio, que diz: “Eu te amo.”

Noite

Talvez seja isto que falte. Uma música, um vinho, um cigarro, um amor. Tudo o que há agora é este calor abafado e o silêncio da madrugada. Luz branca, artificial. Tela do computador, imóvel e indiferente. O mesmo discurso de outros tempos; outros lugares. A mesma sensação de sempre. Um eterno inconformismo que vai se cansando e, aos poucos, transformando-se em tédio. Aquele sono acordado sem vontade de dormir – um torpor permanente, eterno. Em mais uma noite dessas eu penso. Lembro. Faço uma retrospectiva analítica da minha vida. Construo possibilidades mentais que nunca se realizarão. Volto a fita e vou para o outro lado da encruzilhada há quatro anos atrás. Tenho a esperança de que assim eu não acabe perdido sozinho no meio de uma grande metrópole suja e abafada. Sem ninguém. Filmes velhos na tv. A tela do computador indiferente, há anos nos mesmos sites. Eu, há anos no mesmo ciclo. Tenho impressão de que as palavras já foram repetidas à exaustão. Agora só o silêncio faz sentido. Buscar a resposta no nada, no branco, no vazio. É o que resta quando tudo não bastou.

Perpetuação (da série "Estéticos")

Esta sensação antiga, já plenamente identificável, de inadequação ao mundo. Esta sensação de não pertencer a lugar algum, e de ser hostilizado por todos. Eles sabem. Sabem que eu não pertenço a sua raça; sabem que eu não compartilho das suas crenças. Eles me querem morto. Matar-me-ão; esquartejar-me-ão; e após levarem as partes para quatro cantos distintos do mundo, far-lhes-ão arder em chamas – até as cinzas. Para nada restar – nem da obra, nem do homem. Para nada restar do pensamento.

Um Casal Quase Perfeito

Uma menina ruiva parada à minha frente. Foi assim que começou. Era uma tarde quente em Porto Alegre. Era primavera, mas parecia verão. Ela era ruiva, tinha olhos verdes assustados e a pele muito branca. Vestia uma camisola de criança – curtíssima – e estava parada à minha frente, enroscando os pés descalços um no outro e comendo Passatempo recheado. Era dois anos mais velha do que eu, mas olhando assim parecia uma criança. Eu estava deitado, ouvindo Nick Drake com um caderno aberto ao colo. Várias esquematizações inúteis para tentativas vãs de escrever. Ela olhava e tentava descobrir sobre quem eu escrevia. Eu dizia é apenas literatura. Era mentira. Ela sabia. Eu disfarçava. Ela voltava para o quarto ler seus livros de literatura infanto-juvenil. Ela não lia o que eu escrevia. Tinha medo. Eu ainda sentia o cheiro do gozo dela entre minhas pernas. Suor empapando a camiseta e a bermuda. O verão senegalês de Porto Alegre – mesmo na primavera.

O fato é que ela era uma tentativa. Uma tentativa minha. Uma construção. Quase um texto; uma obra literária de olhos verdes e cabelos vermelhos. Eu a amava. Ela não tinha certeza. Não tinha como saber. Sabia apenas que eu amava a mim mesmo e a minha literatura – não necessariamente nessa ordem. Mas eu a amava – enquanto minha construção; minha obra-prima, talvez.

A tarde ia chegando ao fim. A luz ia tornando-se azulada. Eu escrevia na sala. Ela lia um livro amarelo deitada na cama. Porta do quarto fechada. Eu ouvia música. Ela precisava de silêncio. Coisa engraçada, sendo que o silencioso da relação sempre fora eu.

Eu havia lido uma história sobre uma menina morta durante o dia. Ela assistira animes & organizara papéis. Um casal quase perfeito. Algumas horas de sexo de manhã, uma transa rápida à tarde. Poucas palavras trocadas durante o dia. Sobre o que é o livro que tu tá lendo? Sobre uma menina morta. Ah... Um casal quase perfeito.

A noite ia caindo. Mosquitos entrando pela janela aberta. A primavera de quarenta graus abafados de Porto Alegre. Eu escrevendo na sala. Ela lendo no quarto. Porta fechada. Um casal quase perfeito...

Sobre antigüidade e atemporalidade (da série "Estéticos")

Uma antiga casa de campo. Com uma mulher igualmente antiga perdida dentro dela. As janelas abertas. O vento cheio de folhas espantando o mofo escondido pelos cantos. Uma mulher no fim da vida em uma casa que não acabaria nunca. Ambas feitas de lembranças – a mulher e a casa. Um vazio imenso, a ausência de qualquer pessoa outra por séculos, milênios; e todo este vazio preenchido por tudo o que já acontecera, todos os tempos passados passeando ao mesmo tempo pela casa, dançando com aquela mulher que não era mais ela, mas sim muitas, todas as mulheres que ela já fora, todas ao mesmo tempo, toda uma vida acontecendo naquela casa vazia, naquela mulher esvaziada pelo tempo. A imortalidade. O atemporal. A memória. As ilusões reais e a realidade falsa. Uma velha mulher em uma velha casa de campo. Para sempre.

Universo (da série "Estéticos")

Talvez eu esteja morrendo. Amanhã não me lembrarei de nada. Apenas a taça de vinho ao meu lado. O som da minha respiração pesada. Borges segurando minha mão. As desilusões; as decepções; as mortes. E o silêncio. A irrealidade. E a saudade. A falta. As lembranças. Amor. A caneta quase vazia. Tudo. O mundo; o universo; o oceano. Tudo o que é infinito. E eu; também infinito. E Astérion. E as casas vazias. E os sonhos. E as esperanças. E as ilusões. E as mortes (salvações?). Tudo. Nada. Caos. Pensamento. O agir incessante e inútil contra a ordem das coisas. A tragédia. O vinho. A escuridão.

Ménage à trois - Capítulo I

Eu disse que ficaria com as duas, na mesma cama, ao mesmo tempo – pelo menos enquanto me interessasse. A loura riu e desdenhou.

– Tu acha mesmo que podes com nós duas? Eu duvido muito.

No fundo eu também duvidava. Andava meio broxa, bebendo demais e com dificuldades em sentir tesão. O problema é que para mim o tesão deixara de ser uma coisa meramente física. Era um conjunto de sensações que exigia um conjunto de interesses, e vinha andando muito exigente nos últimos tempos.

A ruiva falava sozinha no outro sofá:

– Sexo é sempre sexo. Sempre aquela mesma coisa suada e vazia. Só mais uma fuga. Só mais uma fuga...

Parecia não se importar com o fato de eu e a loura também estarmos ali. E, de fato, não se importava. Não se importava com ninguém além de si mesma. Aliás, creio que este era o grande ponto em comum entre nós três, nossa ligação secreta: não nos importávamos com mais ninguém. Éramos egocêntricos e narcisistas. Ah, e como éramos lindos isolados na nossa torre de marfim. Uma versão ao contrário dos Sonhadores de Bertollucci, mas com o mesmo espírito, aquele ensimesmamento absoluto que nos tornava tão diferentes, tão melhores, tão sagrados.

O mundo lá fora não tinha a menor importância. A noite corria solta. Vinhos caros espalhados pela sala. Música clássica ecoando por corredores vazios. A ruiva imersa em si mesma tendo pena do mundo, da vida e dela própria. A loura tentando ferir alguém a qualquer custo, azeda, ácida, irônica, sarcástica; necessitava ferir alguém – nem que fosse a si própria. E eu ali, no meio de duas lindas mulheres, pensando em sexo, pensando em levá-las para a cama. Não, na verdade não era isso. Eu buscava uma paixão. Eu necessitava, desesperadamente, me apaixonar. Precisava de algo que fizesse o meu coração bater mais forte outra vez; precisava sugar a força vital de outra pessoa, pois a minha já acabara. Usando uma expressão do Juliano Guerra, eu queria me entregar a um deslumbramento, qualquer que fosse, só precisava ser intenso. E aquelas duas mulheres ali, lindas, caóticas, confusas, doloridas, machucadas, juntas, eram mais do que eu poderia sonhar. Eu precisava possuí-las, não necessariamente pelo sexo, mas pela paixão. Eu precisava sugar a sua força vital, nem que fosse pelas suas bocetas.

A loura comentou alguma coisa sobre Godard, Le Mepris, Brigitte Bardot. Ela sempre necessitando provar o quão genial e bela era, sempre necessitando expor aos quatro ventos seus conhecimentos sobre cinema autoral, literaturas raras e filosofia clássica. Na verdade, ela era uma farsa. Não que os seus conhecimentos fossem falsos, muito pelo contrário: eles eram admiráveis e encantadores. Mas ela não os adquiriu para si mesma, para seu gozo e deleite; ela adquiriu-os para mostrá-los, exibi-los, para provar aos outros que ela valia a pena, que ela era boa em algo. Isso fazia dela uma farsa, e me fazia pensar que ela realmente não devia valer a pena.

A ruiva continuava ensimesmada. Às vezes dizia alguns comentários soltos, pensando alto, falando sozinha, coisas como “a vida não vale a pena ou eu que não sou suficientemente boa para conseguir vivê-la?”. Ela era mais existencialista que a loura, embora a outra se considerasse filha de Jean-Paul e Simone. Eu queria as duas juntas, mas era muito difícil estabelecer uma ligação entre elas. No fundo, elas se odiavam. Creio que ambas me queriam só para si, enquanto eu queria as duas para mim – ao mesmo tempo. Era um tipo de relação que estava fadada ao sofrimento. Era um enigma sem solução. O equilíbrio entre nós três era impossível. Mas eu queria.

A loura veio sentar-se ao meu lado no sofá, enquanto a ruiva continuava distante, rabiscando coisas em um caderno de capa vermelha.

A loura só queria me amar, mas era inábil e machucava.

– Se você quiser eu posso arranjar um vibrador para todos sairmos satisfeitos do ménage.

Eu olhava nos seus olhos. Eram verdes e cheios de medo. Medo de ser recusada, medo de não ser amada. E uma carência absoluta. Se eu esquecesse o corpo de mulher, cheio de curvas, e me concentrasse apenas em seus olhos, eu veria uma criança assustada. Nesses momentos eu tinha vontade de pegá-la no colo e cantar uma cantiga de ninar. Mas ela percebia a ternura – e a pena – nos meus olhos e se retraía violenta. Levantava-se, pegava outra taça de vinho, três goles longos e ininterruptos e soltava mais algum comentário ácido.

– Com esse olhar de menininho abandonado tu não vai comer ninguém aqui hoje.

Ela sentia pena de si mesma, e sabia que eu percebia. E isso lhe doía profundamente. Não agüentou. Saiu da sala.

Concentrei-me então, na ruiva.

Ela era linda. Também tinha os olhos verdes. Nos anos posteriores à minha convivência com aquelas duas mulheres, muitas vezes tentei definir qual delas era a mais linda. Confesso que até hoje não sei. As duas eram lindas, uma ruiva e outra loura, e eu as amava.

Com uma taça de vinho eu tirei a ruiva de dentro de si mesma. Ela me sorriu surpresa, como se tivesse me encontrado apenas naquele momento, um sorriso que dizia “oi, que bom que tu tá aqui”. Ela era mais silenciosa que a loura. Mais calma e mais serena também. A loura não sabia conviver com os silêncios; irritava-se e logo começava a brigar. Com a ruiva eu sempre tive silêncios confortáveis. Muitas vezes eu passei horas observando-a enquanto ela se perdia em algum deslumbramento interior. Era lindo. Eu podia vê-la caindo bem fundo para dentro de si mesma, e depois escalando lentamente o caminho de volta, até que ela chegava, e me sorria como quem diz “tu ainda estás aí? Que bom.” A presença dela me acalmava. Os olhos verdes dela eram tranqüilos; enquanto os olhos verdes da loura eram inquietos e desconfiados. Dois olhares completamente opostos em olhos praticamente da mesma cor. Eu achava engraçado.

Eu e a ruiva permanecíamos em silêncio, a observar-nos mutuamente. A tranqüilidade dela era linda. Não saberia dizer o que ela pensava sobre mim naquela hora. Ela já havia me observado por tantas horas, tantos dias, tantos meses, tantos anos... Eu não saberia dizer se havia sobrado algo para ela descobrir em mim. Mesmo assim ela me observava com calma e com afinco.

Historicamente sempre houveram poucas palavras entre nós. Mas ela me compreendia muito melhor do que a loura – que sempre exigiu diálogos longos e exaustivos. Eu e a ruiva apenas no deliciávamos com a presença um do outro. Sorvíamos aquela companhia com o mesmo deleite com que sorvíamos aqueles vinhos franceses. Com a ruiva, sempre os vinhos franceses; com a loura, os chilenos.

Não sei quanto tempo se passou – é impossível dizer –, mas a loura voltou à sala.

– É muita consideração de vocês não terem começado a “festa” sem mim.

O clima do ambiente se alterou totalmente. Era como se nós fôssemos três temperos distintos, e para a comida (a nossa relação, convivência) ficar boa era necessário a dose exata de cada um. Caso isso acontecesse, seria um manjar dos deuses. Mas se as dosagens fossem erradas viraria lavagem para porcos.

Era quase impossível acertar a mão.

A loura trocava os canais freneticamente, procurando uma forma empírica de demonstrar toda a sua linda cultura, o seu valor, a sua presença magnífica. Por fim encontrou Gritos & Sussurros, do Bergman, e começou a discorrer sobre a genialidade da fotografia de Sven Nykvist. Eu e a ruiva permanecíamos em silêncio. Nós já conhecíamos Bergman, Sven e a loura. Por fim, ela desligou a tv e calou-se. Aquele era um momento crítico da noite.

Era ali que seria decidido o nosso futuro, o que aconteceria posteriormente – naquela noite e pelo resto da vida.

A ruiva disse:

– Acho que nós deveríamos ir para a cama.