quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Inexorabilidade

O tempo, sempre traiçoeiro e enganoso. O que seria o tempo, na verdade? Apenas mais uma ilusão da nossa mente caótica, ou algo, como dizem, inexorável? Acho engraçada essa idéia de inexorabilidade. É como uma sina. Não se pode fugir dela. Isso significa que não se pode fugir do tempo. O que na verdade é uma mentira. Não uma mentira no sentido clássico; mais como uma inverdade. Uma inverdade, pois cada um vive em seu próprio tempo, têm suas próprias percepções da realidade, se relaciona com o mundo de uma forma diferente. Então creio que é correto dizer que cada um possui o seu próprio tempo, e que esta inexorabilidade é muito relativa. A nossa maior sina é relativa – depende de uma interpretação própria. Cronos é apenas uma pintura antiga. O relógio é apenas uma máquina. O que mede verdadeiramente o nosso tempo é a forma como vivenciamos a realidade. E não digo isso num sentido filosófico-abstrato, mas no sentido real. O tempo é relativo. É uma construção.

Foi assim. Eu estava sentado pensando sobre o tempo quando ela chegou. Largou suas coisas sobre a cadeira, sobre a mesa, sobre a outra cadeira – a capacidade feminina de sempre carregar mil coisas que não usarão nunca. Conversava, falava sozinha – ou comigo – de outro cômodo. Era barulhenta. Minha paz estava suspensa, e eu sabia que só seria restaurada no momento exato em que ela fosse dormir, reclamando que eu não iria com ela.

Tínhamos horários diferentes. Ela trabalhava o dia inteiro e estudava à noite. Eu ia dormir ao raiar do dia, acordava na metade da tarde. Passava a tarde, a noite e a madrugada pensando, lendo, escrevendo; tentando ser grandioso e artístico. Olhando agora, creio que talvez tenha sido justamente esta impossibilidade de estarmos sempre juntos, compartilhando vivências, que tenha feito nosso relacionamento durar tanto tempo – e da forma mais saudável que era possível entre nós.

Esse saudável incluía, em primeiro lugar, a não-traição. Eu poderia dizer fidelidade, ao invés de não-traição, mas o fato é que não seria apropriado. Todas as milhares de tentativas anteriores de relacionamentos entre nós haviam fracassado justamente pelas traições, de forma que trair-se era o normal para nós. Não éramos pessoas confiáveis – não confiávamos um no outro. Por isso a não-traição como premissa básica de um novo início.

Ela tinha necessidade da minha presença constante e contínua em sua vida. Eu tinha necessidade de solidão. E liberdade. Tinha necessidade de amizades e vinhos. Ela tinha necessidade de mim. Isso gerava um claro desequilíbrio. À noite, a sua necessidade absoluta de mim acabava com o meu tesão. Eu disfarçava. Ia escrever, ler, assistir um filme. Qualquer coisa que me distraísse da necessidade que ela tinha de mim. Ela me sugava. Drenava minha alma. Era uma parasita. Eu sentia isso ao escrever. Quando passava muito tempo com ela, os textos saíam vazios. Ela me sugava.

Andava em volta de mim, tomava goles da minha taça de vinho, conversava coisas desimportantes, fazia convites insinuantes para irmos para cama. No fundo, eu só queria que ela me deixasse em paz. Nosso relacionamento teria funcionado de uma forma muito mais eficaz se ela me deixasse em paz. Mas ela não deixava. Não conseguia. Não podia. Eu era indiferente. Tratava-a com grosseria. Ela se magoava. Eu fingia não me importar, mas a verdade é que eu não tinha outra alternativa – precisava afastá-la de qualquer jeito. Ela me fazia mal.

Por fim, ela dormia. E eu continuava mergulhado na minha solidão quebrada. Mesmo dormindo, eu sentia a sua presença no cômodo ao lado. Eu não estava sozinho. Eu não conseguia me concentrar. E isso me deixava em um permanente estado de improdutiva irritação. Ao longo dos anos fui aprendendo a odiá-la por isso. Odiá-la por me amar, odiá-la por macular a minha solidão sagrada. Odiei-a profundamente por tentar imiscuir-se à minha pessoa.

Ela era uma flor venenosa, planta carnívora – embora não fosse tão linda assim. Ela sufocava, asfixiava, envenenava. Por vezes, quis sentá-la em meu colo, olhar no fundo dos seus olhos verdes e, com um sorriso, dizer: eu te odeio. E eu vou te matar, antes que tu me mates. Eu não fazia, não dizia – embora a vontade fosse permanente. Sinceramente, nunca consegui descobrir qual era a coisa odiosa e pegajosa que nos mantinha juntos. Aquele suposto amor era tudo, menos amor em si. Era paixão, posse, ciúme, violência, raiva, ódio. Tudo menos amor. Mas não conseguíamos livrarmo-nos um do outro. Como uma maldição. Como uma sina. Como o tempo: inexorável. Permanecíamos naquela relação doentia como se não fosse acabar nunca; como se existisse desde o início dos tempos. Havia encontros e desencontros; brigas e sexo; mas continuávamos, permanecíamos, unidos pelo ódio amoroso, amor odioso, ilusão inexorável, impermeável. Não havia explicação. Eu só queria fugir dela para sempre. Eu só queria matá-la.

Ela agia como se nada acontecesse, como se ambos nos amássemos profundamente – mesmo sabendo do ódio recíproco, escuro e violento, que alimentávamos juntos a cada falsa jura de amor. Dizíamos “eu te amo” dormindo. Sonhávamos sonhos de ódio e liberdade. Estávamos matando-nos mutuamente.

Ela não se importava. Ao menos não parecia se importar. Já estava acostumada a este jeito de sermos um com o outro – venenosos, ardidos, maus. A crueldade como única salvação; como redenção. Mas não é fácil ser cruel com palavras de amor. Exige muita prática e talento. Machucar com um “eu te amo” é uma arte para mestres, uns poucos escolhidos. E nós éramos escolhidos; sagrados e escuros. E nos odiávamos com muito amor, nos amávamos com muito ódio. Creio que no fundo os sentimentos se misturavam e acabavam virando uma coisa só, um ódioamor ou amoródio, algo que nos matava e nos permitia viver ao mesmo tempo; algo que secou-nos por dentro.

Eu sempre a culpei pela morte do eu romântico. No fim, eu estava certo. Ela era a morte dos sentimentos para mim. Pelo menos dos bons. Sobrava apenas aquele amoródio infernal que me torturava noite após noite. Teria sido melhor se morresse – se ambos morrêssemos. Teria sido menos doloroso. Teria sido mais fácil. Mas sobrevivi, como uma ironia, talvez única e exclusivamente para contar esta história. Sobrevivi; sobrevivemos – monstruosos.

Por vezes pensava que não éramos mais humanos, e tentava em vão buscar na memória o momento exato onde a humanidade se perdeu, onde aquelas duas pessoas que nós éramos morreram e transformaram-se nestas criaturas abomináveis que se amorodiavam mutuamente. Nunca consegui lembrar. Não havia resposta. Não havia volta. Estávamos condenados. Condenados um ao outro.

Mas eu queria fugir.

Creio que uma das coisas mais engraçadas do ser humano é a liberdade, e como ela é relativa. A liberdade, na verdade, não existe – ilusão inexorável; sina. Todos são tecnicamente livres para fazer/pensar o que quiserem, mas o fazer/pensar e, mais a fundo, o próprio ato de ser já está atrelado a uma série de, digamos, regras predeterminadas. O ato de ser já está previamente condicionado a um tipo de ser. O que foge a isso é ignorado ou eliminado. A liberdade, vista de fora, é algo realmente muito engraçado. Ou melhor: seria (já que ninguém realmente a vê de fora; todos estão imersos nela).

Pensando sobre liberdade eu percebi que não poderia fugir dela. Percebi que como criaturas não-humanas era justamente este amoródio o que nos mantinha vivos – que não havia fuga possível. Ou pelo menos era nisso que eu acreditava, e pelo fato de eu acreditar tornava-se real – a minha realidade inexorável, moldada ao meu bel-desprazer (o prazer apenas pelo prazer não existia para mim – ou existia?).

Decidi continuar com ela então. Não creio que se possa chamar efetivamente de decisão, pois eu não tinha escolha; mas convencionei chamar de decisão – talvez para não sentir-me tão impotente diante da inexorabilidade dos fatos, do mundo. Continuávamos então, até a nossa próxima morte. Não soubera o que haveria além da humanidade e do amor – tivera curiosidade e medo. Estes sentimentos voltavam agora, pressentindo o que surgiria após esta não-humanidade monstruosa e seu amoródio. Tinha vontades suicidas de matá-la ou deixá-la, pois sabia que assim também morreria – sentia que éramos um organismo uno, ela, meu duplo, meu gêmeo siamês na monstruosidade –, e talvez descobrisse (novamente) o que havia depois.

Ela, creio, tinha medo. Ou talvez não fosse medo. Talvez estivesse simplesmente viciada em mim; viciada em nosso amoródio dilacerante. Ela não podia mais evitar, não podia mais controlar-se: era uma dependência químico-espiritual que ela desenvolvera de mim. Uma dependência que eu não desenvolvera – ou que pelo menos acreditava não ter desenvolvido, o que a tornava inexistente para mim. Mas isso só fazia aumentar a vontade suicida que eu tinha de matá-la. Ela, cada vez mais próxima a mim; eu, cada vez mais distante dela. A morte, cada vez mais íntima de nós.

Eu só queria me libertar, mas parecia não ser possível. Eu implorava para todos os deuses que conhecia, mas os deuses atendem apenas a humanos, e eu era desumano. Estava no limbo. Com ela. Sem fuga. Sem vida. Sem sentimentos. Uma condenação muito mais pesada do que eu jamais merecera. Queria, com todas as forças, morrer.

Eu via a escuridão como uma vitória, mas não desejava que esta escuridão fosse compartilhada – eu a queria só, una, indivisível em mim. Mas eu era ela e era também o nosso amoródio como uma força elemental que une um átomo a outro e forma uma matéria viva pulsante repugnante nós eu e ela em mim. Eu não queria nada disso. Ela talvez quisesse e por isso eu a odiava – mas não sem amor.

Mas vamos voltar ao ponto de partida, eu quero voltar ao ponto de partida, sinto tudo mal-esclarecido, como uma pintura desfocada, borrões no lugar dos rostos. Por incrível que pareça, esta arte ambígua nunca me atraiu. Na verdade atraiu, mas ela é inútil agora que quero deixar as coisas mais claras possíveis; límpidas, cristalinas. Quero voltar ao começo, onde havíamos apenas eu, ela, antes do amoródio, apenas nós dois como uma página em branco. Então imagine que eu estou começando a contar de uma nova forma, agora, assim:

No início, nós nos amávamos. Sim, era amor. Talvez tenha sido o meu primeiro e único. Quanto a ela, não sei – mas acho que também. Mas o fato é que o amor só dura enquanto for perfeito. A partir do momento em que ele se quebra, nunca mais será amor – pelo menos não entre as duas pessoas envolvidas. Insistir neste amor quebrado, despedaçado, destruído, só levará a outros sentimentos – geralmente os piores possíveis – e a outro tipo de ações – geralmente aquelas que causam desgraças (para o corpo e para a alma). De fato, o amor se quebrou, e a nossa insistência naquilo que não existia mais nos trouxe às já citas desgraças para o corpo e para a alma – e nos transformou no que somos agora – criaturas do amoródio. Não creio ser discutível se isto era evitável, se foi uma escolha, ou se, novamente, era algo inexorável. Simplesmente, a esta altura, não importa mais. Agora tudo é inexorável. Todas as escolhas, sem escolha – como sempre foram. O fato é que houve um início, e eu acreditei – nós acreditamos. Mas o que houve depois foi o que importou, e sobreviveu, e sobreviveu-nos. Novamente, não sei se isto é bom ou ruim – eximo-me aqui de qualquer juízo de valor.

O fato é que depois do amor, e do desamor, e da vida, e da morte, houve o momento, ou melhor, o período, pois não foi um momento apenas, foram eras, embora seja tudo a mesma coisa, senti-me preso em um único momento durante todas estas eras, mas houve o período onde decidimos que nos amaríamos sem amor, nos odiaríamos sem ódio, viveríamos sem vida, morreríamos sem morte.

Veio-me um pensamento agora: não sei por que conto esta história. Ela não servirá de nada, não salvará ninguém. Aqueles que estão perdidos já não possuem mais volta – e são todos. O calendário maya, 2012, os quatro cavaleiros do apocalipse. Tudo bobagem. Os apocalipses são internos. E todos já aconteceram. Agora é só questão de tempo. Pode ser amanhã. Ou daqui a 10.000 anos. Pode ser em um momento ou para sempre. Todos estão mortos. Não há salvação. O tempo não existe, é ilusão. As pessoas igualmente. Nós dois, com o nosso amoródio, somos uma transição. Não somos os únicos. Há milhares. Escondidos; disfarçados; camuflados. Somos o futuro e o passado. Somos a única esperança desesperançada de vida e morte e tudo e nada. Somos universo e vazio – todos nós. Não há salvação. O destino é inexorável.

A última lágrima cai. Quis apenas contar esta história antes que tudo se faça escuridão; antes que tudo acabe – embora nada nunca acaba: nem mesmo nós; nem nosso amoródio. Um dia acreditei – acreditamos – que poderia dar certo. Deus é uma criança brincando com uma fazenda de formigas. Não há ordem, apenas caos – o fogo que consome e a água que afoga e a beleza (agora sim, verdadeiramente) inexorável. O caos é belo. Nós dois não somos nada. Deus não existe. O universo é ilusão. A vida é inexorável. E a morte. E o tudo. E o nada.

Lembro-me apenas disto: resta, no fim de tudo, apenas uma voz na escuridão. Uma voz cheia de ódio, que diz: “Eu te amo.”

2 comentários:

zevilseki disse...

muito bom cara!

...Guga... disse...

Ela é uma flor venenosa ou o veneno está em ambos??

Conhece a história de Eros e Psiquê?

Acredito que sim, mas te darei algumas opiniões.

Amor só existe em confiança. Primeiro ponto. Sem confiança não há amor. Se você não confia nelo ou/e vice-versa, o que você está experimentando é um arremedo de amor e isso desgasta a alma.

Segundo Eros (amor) e Psique (alma) tiveram um filho chamado Voluptas (prazer). Se não há prazer na companhia dela isso quer dizer que a união não é de carne e de espirito. Também não creio em Deus, mas creio na energia dos seres e sua importância. Busque alguém para compartilha uma alma, e não uma cama.