segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Leslie

Leslie vivia no campo e adorava chocolate. Era uma vida adocicada, calma e tranqüila. Com canto de pássaros e borbulho de águas calmas ao seu redor. Era enlouquecedor. Torturante. Os pássaros. O borbulho. A paz. Leslie possuía uma alma inquieta, necessitava de agitação, da vida corrida das metrópoles, ela precisava daquele ritmo frenético para sentir-se viva. Mas estava presa num cárcere sem paredes e em campo aberto. Campos. Sua prisão eram campos abertos. Como os campos das antigas guerras, quando ainda se lutava com espadas. Quando coragem e honra ainda tinham algum valor. Leslie estava presa e enlouquecia. Enlouquecia pelo fato de não viver a vida que escolhera para si, de não viver vida nenhuma. Enlouquecia pelo fato de não ter tido escolha – e isso serve como um alerta: a falta de escolhas enlouquece. As chamadas escolhas sem escolha, belíssimo termo, podem ser fatais. Há que se estar preparado para resignar-se, e às vezes a resignação e o desgosto matam. Leslie era uma pessoa desgostosa. Chorava convulsivamente, escondida para que não vissem sua fraqueza. Quase ninguém a via mesmo, mas caso visse, viria uma mulher forte e, quiçá, em raros momentos, alegre. Uma mulher feliz e realizada pela consciência do seu talento vão. E ninguém nunca seria capaz de ver a prisão sem muros que a corroia por dentro. Só havia o silêncio naquela grande casa de campo. E só havia o silêncio dentro de Leslie. Um silêncio tão absoluto que a enlouquecia. Mas em pequenas parcelas, mordidinhas, corroendo, segundo após segundo, minuto após minuto, hora após hora, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano, década após década. Por dentro ficava um buraco que a cada dia ia ficando mais fundo e mais escuro. E o vazio ia crescendo e as palavras iam escasseando e Leslie ia secando, morrendo de dentro pra fora, como uma árvore atingida por um raio, morta em sua essência, mas viva aos olhos dos outros, viva para o mundo. Podemos pensar em quantas pessoas nós conhecemos que são mortas por dentro e vivas para o mundo. Eu pensava em Leslie e Leslie morria. Mas não era uma morte puramente física, esse esgotamento do corpo era puramente um reflexo, a morte de Leslie era mais profunda, era uma morte espiritual, uma morte da qual ela não conseguia se livrar. Leslie morria enquanto todos à sua volta sorriam. Sorrisos falsos, simpatias forjadas, sopinha de legumes e pilhas de remédios. Essa era a receita mágica que devia salvar Leslie. Não adiantava de nada. No começo ela fingia melhoras, forjava falsas alegrias, tomava a sopa e os remédios. Depois ela deixou de se preocupar com isso. Isolou-se cada vez mais em si mesma, um processo contínuo, insolúvel e irreversível. Leslie morria. Mas sua alma irrequieta tinha ânsia de transmitir todos os conhecimentos que ela adquirira em incontáveis segundos de vivências mínimas e divagações infinitas. O vôo da joaninha a fazia questionar a existência de Deus e a origem do universo. Leslie era uma mente muito forte aprisionada em um corpo muito fraco. Havia um desequilíbrio evidente. Como eu já disse anteriormente, no começo ela lutava contra isso, mas depois ela se aceitou por inteira, com todas as suas potencialidades e deficiências. Aquela morte em vida era apenas um processo. Leslie era como uma larva que necessita passar pela eternidade de um casulo antes de poder resplandecer nos céus. Mas ela era impaciente. Fugia do nada para o nada. Fazia tentativas vãs que nem mesmo ela entendia. Na verdade não eram tentativas de morte, não eram tentativas de fuga. Eram tentativas de uma ressurreição mental e espiritual. Leslie estava completamente perdida. Ela necessitava de uma luz na escuridão. A vida trivial que as mulheres supostamente deveriam levar dava-lhe ânsias de vômito. No fundo, ela queria ser aceita pelo que ela era: uma escritora brilhante e talentosa, e nada mais. Ela possuía as suas excentricidades e sabia disso, mas isso não era da alçada das outras pessoas e não cabia a ninguém, além dela mesma – e às vezes nem mesmo ela –, julgá-la. Aquela paz e serenidade iam deixando-a cada vez mais angustiada, pois cada vez mais ia bloqueando o seu talento e aumentando o seu vazio interior. Ela detestava o vazio. Havia tantas coisas a serem vividas, e todas estavam imbuídas de tantos significados quanto a imaginação pode alcançar. Ela se recusava ao vazio. O vazio era perda de tempo. Ela queria preencher tudo, com todos os sentimentos e pensamentos que lhe fossem possíveis. Ela buscava uma completude. Algo que lhe desse uma compreensão nunca alcançada, uma compreensão que talvez lhe permitisse a verdadeira felicidade – ela supunha. E talvez estivesse certa, nunca saberemos. Cada um possui os seus próprios processos internos, e os de Leslie eram geniais e incompreensíveis. Leslie procurava um amor que transcendesse o plano físico. Ela queria sempre algo a mais. Os sentimentos nunca lhe pareciam intensos o suficiente. Talvez porque os seus sentimentos fossem muito intensos, ela sentia-se eternamente uma amante não correspondida, por mais amada que fosse. Para ela, nunca era o suficiente. Chorava sem saber por quê. Dilacerava sua alma em lágrimas de desespero inventivo, o desespero da incompreensão. Incompreensão para ela sempre representou escuridão, e ela vivera na escuridão por tempo demais. As pessoas não a compreendiam. Nunca compreenderiam.

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