terça-feira, 21 de outubro de 2008

Caminhada Noturna

Para onde vou? Belíssima questão. Nós sempre nos perguntamos para onde vamos, sem nunca prestar atenção de onde viemos. A noite está agradável. Há uma brisa leve e fresca, que faz as folhas escuras das árvores farfalharem. Meus passos ecoam pelas ruas desertas. Nietzsche já dizia que os únicos pensamentos válidos são aqueles que temos caminhando. Andando agora, nesta madrugada deserta por estas ruas solitárias, isso começa a fazer sentido. As cidades de interior, em dias de semana, morrem à noite. Vez em quando uma que outra viva alma cruza o meu caminho; fora isso, tudo é deserto. É complexo, sabe, essas coisas de andar por ruas desertas. Já é tarde, quase cedo. Alguns passarinhos já se atrevem a dar alguns piados. E eu pensando numa moça distante, e lembrando da imagem de Caio dizendo pra escrever tudo que vêm à cabeça. Devaneios, delírios. Acho que estou ficando louco. Esquizofrênico, até. Às vezes tenho alucinações, sabe. Vejo pessoas que não existem. Sabe, elas me atormentam. Passo por uma loja onde há manequins na vitrine iluminada. Eles parecem vivos. De início eu tomo um susto, mas depois aquilo me dá uma opressão, os manequins que parecem vivos, as pessoas que não existem, tudo me apertando o peito, e eu quase choro. Mas bem no momento em que eu vou derramar a primeira lágrima, um passarinho canta bem alto. É um canto bonito. Não sei que pássaro é, eu nunca soube distinguir o canto dos pássaros, embora eu tenha sido criado no interior, no meio do mato, onde meu avô e meu tio sabiam distinguir e imitar com perfeição o canto de todos os pássaros que ali haviam, sabiam cantar como pássaros, cantar para atraí-los, cantar para matá-los. Atrair & matar. De uma forma ou de outra, estes verbos sempre estiveram presentes na minha vida. Mesmo quando meu pai ficava dormindo, ou então andando de roupão pela casa de campo dos meus avós, meu pai sempre tão urbano, enquanto meu avô e meu tio iam cantar e matar passarinhos. Sabe, aquele canto sempre me pareceu algo ritualístico, algo entre uma marcha fúnebre e uma ode à morte. Vai ver era mesmo isso. E eu sigo caminhando pelas ruas desertas. Embora ainda seja noite escura, fechada, os pássaros já anunciam a manhã como se ela estivesse aqui. Vai ver está, eu que não vi. Passo numa rua secundária, mais deserta do que as outras, e ouço urros, que a primeira vista me parecem lamentos melancólicos, talvez uma mulher recém-estuprada chorando suas mágoas ao vento, talvez alguma dor forte & funda, algum coração despedaçado. Depois os gritos me parecem algazarra de adolescentes, alguma festa com sexo, drogas & rock'n roll, em plena madrugada de terça-feira, desafiando as regras de cidade pequena, há quanto tempo eu fazia isso também? Não deve ser muito, não sou tão velho... ou sou? Não consigo me lembrar. Por fim percebo que é apenas o choro de uma criança, e por entre cortinas esvoaçantes vejo a luz de uma televisão sem som em um apartamento térreo. Eu nunca entendi porque as crianças choram à noite. Algo a ver com o escuro, algo a ver com pessoas que não existem, monstros embaixo da cama... A noite calma faz minha mente voar mais do que qualquer droga. Eu caminho alienado enquanto os vigias das ruas me observam com atenção, eu, um tipo tão estranho, todo de preto, com longos cabelos cacheados e um chapéu destes que não se usam mais. Talvez achem que eu estou drogado. Ou tentando assaltar alguma casa. Provavelmente os dois. E os passarinhos continuam cantando. Tem um poema famoso que fala alguma coisa assim, sobre passarinhos, alguma coisa como "você passará, eu passarinho", nem me lembro mais... Vejo as placas de rua e viro para o lado oposto, só por diversão. As placas não são para pedestres mesmo, mas eu exercito a minha tendência natural à contrariedade. Eu sempre fui tão contrário a tudo e a todos. Passo agora em frente a uma mini-pracinha, em frente a uma casa colorida, uma creche provavelmente, e isso me lembra os dias felizes da minha infância. Está tão nostálgico esse passeio. Mas há aqui, em frente à essa creche, o cheiro forte de alguma árvore desconhecida, que me desperta mil lembranças, me atirando de volta com força à minha infância, junto com o colorido dos brinquedos. Já é primavera e os mosquitos me comem vivo, enquanto na casa ao lado da creche um cachorro se movimenta e se agita, inquieto por detrás do muro, sentindo a minha presença aqui parado, a minha presença, que eu sempre desconfiei não ser muito boa. Acho que não há cachorro algum. Devem ser apenas passarinhos. Ou gansos. Ando pelas ruas e ouço portas rangendo, mas não há nada. Já estou perto de casa agora. Sinto a manhã se aproximar, embora não haja resquício dela no céu. Deve ser só impressão, uma impressão errada, mais uma... Os pássaros são agora bem mais numerosos, e cantam cada vez com mais força. Passo por uma prostituta em uma esquina e agradeço o convite, mas sabe como é, estou sempre sem dinheiro e ela pode ser um travesti. Ando no meio da rua. Sempre gostei disso. Talvez pela transgressão, talvez pela solidão. Sento-me em uma escada perto de casa. Uma placa balança violentamente, embora o vento pareça ter diminuído. Agora os carros já começam a aparecer. E as vozes. É hora de ir para casa e trancar-me até a próxima noite solitária, trancar-me até que a próxima noite revele o seu esplendor só para mim. E ainda preciso ir tomar o café da manhã com minha mãe. Levanto-me e sigo. A luz de um poste apaga quando passo. Isso acontece sempre. Imagino que deva haver alguma explicação científica, mas prefiro acreditar que são os meus fantasmas. Eu gosto deles. Pessoas que não existem, princípio de esquizofrênia, essas coisas... Não vou contar as páginas, não vou olhar a hora, nada. Alguma coisa eu já devo ter escrito, só espero que seja bom. Vejo a lua alta no céu, pela primeira vez na noite, e ela não parece anunciar a manhã. A luz de uma vitrine pisca incessantemente, e quando eu passo, ela apaga. Fantasmas, esquizofrênia... O vento aumenta agora, estou quase em casa... É tudo mentira. Eu ainda não me levantei daquela escada. Embora a lua, a luz da vitrine, os fantasmas, o vento, as palavras, tudo isso seja real. Agora eu vou-me de fato. Na primeira quadra passo por uma bandeira do Brasil tremulando no alto de um edifício. Escarneço. Acho engraçado, mas daqueles engraçados amargos. Nunca gostei destas porcarias de "ame uma pátria forjada a sangue escravo e venha para o exército". Tampouco fui revolucionário ou esquerdista, sempre gostei de vinhos chilenos e tabaco dinamarquês. Na adolescência tive uns flertes com aquela porcariada toda de República Rio-Grandense, mas já passou. Aliás, todas as pseudo-tentativas de lutas ideológicas da adolescência já passaram. Se é que houve alguma. A verdade é que eu sempre fui um acomodado. Começa a ficar frio agora. A lua continua alta e a manhã parece que não virá hoje. Tenho efeitos retardados de drogas variadas e vejo luzes que não existem cruzando o meu caminho. Um duende joga uma semente no meu chapéu. Duendes são sempre tão brincalhões. Dou voltas pelas quadras ao redor da minha casa procurando prolongar o caminho o máximo possível. Está muito frio agora, mas a noite continua maravilhosa. Quando estou quase chegando em casa um passsarinho pousa aos meus pés e começa a catar umas sementes pelo chão. Acho engraçado, mas desta vez sem o amargor, apenas com nostalgia. É um engraçado com um sorriso meio triste. Quando chego na esquina do meu apartamento todos os passarinhos cantam de uma só vez, e desta vez eu não consigo conter as lágrimas. Tenho vontade de matá-los todos, um a um, esmagando-os entre meus dedos, vendo suas vidas pequeninas esvaírem-se, e suas belas vozes calarem-se. Antes de entrar em casa olho para o céu pela última vez e vejo que um azulado claro começa a surgir. A manhã finalmente chegou. Eu chego em casa gelado. Encontro o elevador no térreo. Eu fui o último a sair, eu sou o primeiro a chegar. Ao entrar no elevador e apertar o botão do sexto andar, tenho a sensação de que algo morre em mim. E o pior é que eu nem sei o quê. Agora não importa mais, já se foi.

Um comentário:

Crazy Mary disse...

"É um engraçado com um sorriso meio triste." Tenho vontade de tantas coisas quando isso acontece cmg. Ótimo.