sábado, 16 de agosto de 2008

Cotidiano

Acordo e vou dar uma volta. Meu braço ainda dói das mordidas que aquela piranha me deu. Quando ela me disse que gostava de morder, eu disse “vai fundo, pode morder”, e ela me mordeu com tanta força que eu trinquei os dentes pra não gritar, e a nossa transa foi toda assim, com ela tendo os dentes cravados na minha carne e eu trincando os dentes pra não gritar. Então eu saio com o braço dolorido, a roupa amassada, não mais amassada que a cara, e o cabelo despenteado. Não escovo os dentes, não lavo o rosto, não tomo banho há vários dias, os mesmos dias em que permaneço com esta mesma roupa, dia e noite. Não tenho cobertas, então durmo com meu sobretudo nas noites frias, e mesmo assim passo frio e acordo no dia seguinte meio gripado. Esta pensão onde moro não ajuda muito. Suas paredes, que deveriam ser de madeira, parecem de papelão. O lugar todo é mofado e embolorado, e a velha dona da pensão, uma gorda mal-encarada, entra a hora que bem entende no meu quarto, e geralmente escolhe as horas mais impróprias, quando estou batendo uma punheta ou comendo alguma putinha que dá de graça. Meu colchão fede a porra seca e eu gosto disso. O cheiro de porra se mistura ao cheiro de mofo e cria este ambiente agradável que é o meu quarto. Para mantê-lo eu nunca abro as janelas, nem durante o dia nem durante a noite, sempre janelas fechadas e sempre a mesma roupa de cama. Eu sempre durmo o dia todo e saio à noite pra beber, mas esta noite estava fria e eu fiquei em casa. Não consegui dormir, então saí pela manhã. Passei numa universidade aqui perto da pensão, pedi um café. É impressionante o contraste. Os universitários, com suas carinhas bem barbeadas, banho tomado, cabelo penteadinho para o lado, roupinhas bem lavadas e bem passadas. E do outro lado, eu. Eles se assustam à minha visão. Pareço um mendigo sujo enfiado em um sobretudo velho. Na verdade, sou quase isso. Sento em um banco da universidade tomando o café muito fraco e muito doce, esses filhos-da-puta engomadinhos não agüentariam um café de verdade. São o tipo de gente que quando crianças a avó colocava açúcar no copo de cerveja e dava para eles tomarem. Garanto que ainda preferem cerveja com açúcar. Filhos-da-puta. O açúcar aumenta o teor alcoólico, vai ver foi isso que fodeu com o cérebro deles quando crianças, daí cresceram esses retardados. Engulo o resto do café muito ruim e meio frio, enquanto cai uma chuva nada poética mas muito fria, e eu penso nas minhas desgraças. Sempre gostei muito do ar decadente, mas ele não é tão glamouroso quanto parece. É divertido às vezes, mas no fim tudo acaba numa merda. Divirto-me com essas putas que vêm me visitar e não conseguem esconder o nojo que têm desse chiqueiro onde eu vivo, mas ainda assim trepam comigo. Mas quando elas vão embora só fica o cheiro de porra e o vazio. É como se a minha alma saísse junto com os jatos de esperma, e só ficasse um grande pedaço de carne mole e exausto e fedendo a sexo. Caminho pela chuva fria pensando que já devo estar meio doente. Eu sempre passo os invernos inteiros meio doente. Apalpo meu braço e sinto que ainda me doem as mordidas daquela piranha. Hoje cedo eu tirei as roupas e olhei para o meu braço nu, com marcas de dentes. Algumas marcas estavam pretas, mórbidas. Outras tinham um agradável tom arroxeado. E ao redor delas a pele começava a adquirir tons amarelados e esverdeados, tons de decomposição. Não dei bola, mas dei um bom gole na garrafa de vodka, coloquei as mesmas roupas e saí. A velha mal-encarada ficou me cuidando. Ela sempre faz isso. Quando ela entra no meu quarto e eu estou comendo alguma piranha, ela olha com cara de nojo e raiva, e bate a porta. Mas quando ela entra e eu estou batendo punheta, ela sempre dá um sorriso de satisfação, e se demora olhando para o meu pau molhado e reluzente, às vezes com um fio de baba correndo do canto da boca, e encosta a porta bem devagar. Cristã devota, a velha. Um dia ainda enrabo ela. Se ela der desconto na mensalidade deste muquifo. Não adianta. Meus desejos vontades necessidades sempre foram o mais importante, o resto é o resto. Eu já tentei ser diferente. Já tentei ser daquelas pessoas que tomam banho todo dia, fazem a barba e querem se mostrar apresentáveis aos outros. Tentei. Mas não durou muito. Tentei até mesmo namorar. Mas eu não tenho o dom pra relacionamentos. Mas eu sempre continuava, e naquela época eu ainda tentava fazer o menor mal possível a quem estava comigo. Bobagem, eu sei. Nunca funcionava, o mal era sempre grande demais para elas. Hoje eu só como putas. Facilita muito a minha vida. Eu pago e elas vão embora. Ou eu não pago, elas gritam, xingam, cospem na minha cara e vão embora. Uma vez teve uma que chutou o meu saco. Mas valeu a pena, foi a melhor foda de todas. O único inconveniente são esses cafetões filhos-da-puta – literalmente – que querem me pegar. Mas se eles têm putas de sobra, lhes falta cérebro. A manhã está fria. Volto pra casa – pr’aquele muquifo que eu chamo de casa – e bato uma punheta enrolado na roupa de cama mofada e fedendo a porra. Durmo afogado no meu próprio sêmen. Essa é a minha vida. Eu nunca pedi outra.

Quando saio já está escurecendo. Vejo um vendedor de flores sorridente, os dentes muito brancos contrastando com a pele escura. Ele anda em círculos numa esquina, segurando braçadas de rosas vermelhas. Penso que se comprar flores não terei dinheiro pra comprar comida. Lembro-me com um sorriso de escárnio que em outros tempos, quando eu era um romântico inveterado, não hesitaria em passar fome para comprar um punhado de rosas para uma piranha qualquer. Hoje essa idéia nem me passa pela cabeça. Se bem que eu também não penso em comprar comida. Vou comprar uma vodka ou umas cervejas. Queria comprar ambas, mas o dinheiro não dá. Que merda! Não consigo nem me embebedar direito. Compro uma vodka, mais álcool pelo menor preço. Precisamos ser econômicos em tempos de crise.

Caminhando pela rua eu me lembro de um professor com quem cruzei pela manhã na universidade. Um filho-da-puta qualquer de meia idade, que faz o possível pra tentar esconder a grande barriga cheia de merda e banha e a careca reluzente. É o tipo de filho-da-puta que desconta suas frustrações nos alunos. Eu diria que o problema dele é falta de mulher, mas pensando bem, ele me parece um veado enrustido, daqueles que planejam cuidadosamente o seu desalinho em frente ao espelho e têm ereções ao assistir cenas de nu do Brad Pitt. Acho que o problema dele é falta de homem mesmo. Filho-da-puta mal-comido.

(Foi interessante eu ter escrito “veado”. Tem um amigo meu que diz que quem escreve “veado” é veado. Ele diz que homem que é homem escreve “viado”. Ele é um veado.)

Passo por uma puta que me faz um olhar convidativo, mas eu não tenho dinheiro. Ela me lembra uma outra puta que eu comia e que gostava de apanhar, e que fazia cara de nojo quando eu dizia “eu te amo”. “Me come”, era a única coisa que ela dizia entre gemidos furiosos. Na mesma época eu comia outra puta que gostava de trepar menstruada. Ainda me lembro das minhas cuecas brancas manchadas com o sangue vermelho-escuro, provavelmente aidético. Nunca mais consegui esquecer o cheiro forte do gozo dela misturado com sangue. Mas nenhuma delas foi pior do que a puta apaixonada, que me fazia declarações de amor antes, durante e depois do sexo. Não há nada mais broxante do que uma mulher apaixonada por você. Às vezes ainda tenho pesadelos com ela. No meu pesadelo eu estou comendo ela de quatro, quando ela dá uma olhadela pra trás e diz: “Eu te amo.” Eu broxo na hora, e acordo suado e gritando. Pânico é o que sinto. Sempre que ela dizia “Eu te amo”, eu lhe dizia “Eu também te amo, mas nós não vamos ficar juntos”. Mas a minha preferida era aquela puta que, quando a foda era ruim, me dizia “Cai fora daqui, seu bosta!”, e quando a foda era boa, me dizia “Eu te amo!”, e subia em mim e gozava rios em cima da minha barriga. A gosma de cheiro forte escorria pelos dois lados da minha barriga e encharcava lençóis e colchão. Aquilo é que era puta de verdade. E tinha também aquela que eu sempre comia de quatro, e que quando eu gozava dentro dela, virava-se pra mim e dava-me um sorriso radiante como o sol de verão. Mas a minha vida sempre foi um rigoroso inverno. Eu fico imaginando, se fosse possível juntar cada uma dessas mulheres únicas e maravilhosas, se fosse possível juntar todas elas em uma única e esplendorosa puta. Seria uma super-puta, a Rainha das Putas, e eu a comeria noite e dia e morreria gozando no fundo da sua vagina larga e experiente. Eu acho que só conheci esse tipo de sexo, decadente, com cheiro de álcool e cigarros, com cheiro de gozo de puta, puta que já fez outros programas na noite, sexo em lugares escuros com poeira acumulada sobre móveis velhos. Nunca uma cama confortável, com lençóis macios e um blues ao fundo. Sempre este sexo imundo com a escória da humanidade, trepando encostado em pias com louça suja acumulada há semanas, com vermes nascidos ali mesmo circulando ao meu redor enquanto fodo.

Eu durmo e sonho com o velho Bukowski, sentado em um bar qualquer no inferno, tomando cerveja com o capeta e dizendo algo com “you know, fuck it’s something spiritual”, e acordo com vontade de foder e vomitar. Ao mesmo tempo. Já fiz isso algumas vezes. Já vomitei em cima de putas enquanto fodia. Foi como um gozo. O gozo mais real e mais válido que aquelas vagabundas já receberam na vida.

Me disseram que eu ando muito amargo ultimamente. Eu disse: “Vai tomar no cu!’ Tudo uma coisa muito espiritual.

O problema com as mulheres de hoje em dia é que elas não entendem que às vezes você está muito cansado pra uma trepada. Às vezes tudo o que você quer é uma boa chupada, com elas engolindo até a última gota de porra. Isso é que é prova de amor. Por isso eu prefiro as putas. Você paga, elas chupam. E se você pagar bem, elas engolem tudinho, não deixam derramar uma gota. Por isso eu amo as putas. E elas me amam. Ou pelo menos amam o meu dinheiro, ou o dinheiro que acham que eu tenho. No fundo todas elas sabem que eu sou um fodido, mas trepam comigo mesmo assim, porque elas sabem que os fodidos trepam melhor.

Sinto a cerveja fermentando em minhas tripas e esses cigarros em demasia já estão me fazendo mal. Já não consigo respirar sem esforço. Eu penso “Foda-se!”, e tenho vontade de comprar mais uma cerveja e mais um maço de cigarros, mas meu dinheiro acabou. Passo por um mendigo deitado na calçada, enrolado com um vira-lata sarnento em um cobertor de lã puído. Ele tem uma garrafa de cachaça vagabunda apertada contra o peito e um cigarro pendendo do canto da boca. Tenho vontade de espancá-lo, matar seu cachorro, queimar seu cobertor e roubar a sua cachaça e o seu cigarro. Mas eu ainda sou muito fraco ou covarde ou humano pra isso. Um homem de verdade o faria. Eu baixo a cabeça e continuo caminhando pela noite fria, sem bebida e sem cigarros. Entro em um bar qualquer e sento no balcão. Com sorte vou encontrar algum babaca pra me pagar uma cerveja. Garrafas voam pelo recinto e bêbados trocam socos por sobre as mesas. Comento alguma coisa do tipo ah-que-beleza-o-espetáculo-da-decadência-humana com uma camarada semi-adormecido sentado ao meu lado. Ele vomita na minha calça. Dou-lhe um soco nas fuças e ele cai, mais de bêbado do que pelo soco. Vou embora do bar.

Caminho pelas ruas já desertas na madrugada. Lembro-me de quando ainda namorava uma dessas menininhas ingênuas que acreditam no amor. Lembro que quando encontrávamos alguma amiga minha na rua e parávamos para conversar e ela sentia aquela afinidade entre eu e A Outra e ela sabia que A Outra era mais inteligente e mais culta e melhor de cama e que eu a trairia com A Outra na primeira oportunidade que tivesse e isso lhe doía até o desespero. Ela se suicidou. E eu não fui no enterro porque estava comendo A Outra e, convenhamos, que tipo de babaca larga uma boa foda pra ir num enterro? De qualquer forma, sempre me soou falso quando eu dizia “Eu te amo pra sempre.”

Sexo é uma coisa banal. Não há nada de sagrado no sexo. Sexo é um animal fodendo o outro. E nunca passamos mesmo disso: animais. A única diferença é que nós temos rituais mais elaborados para conseguir o sexo. Chego em casa já de manhã. Olho pela janela e vejo dois pássaros trepando em cima de uma antena de tv. Penso que se nós tivéssemos penas ao invés de pêlos, não seríamos muito diferentes deles. Hoje foi um dia de merda, uma noite de merda, uma madrugada de merda. Deito e durmo pra esquecer. Amanhã tem mais.