quinta-feira, 17 de abril de 2008

Por Amor

Acorda ainda atordoado. Observa por uma fresta da janela o dia cinza lá fora. Pressente a chuva fria. Liga o abajur. A luz fraca. Achava que era a leitura de muitos livros sob aquela luz fraca que estava deixando-o cego. Passa os olhos pelo quarto. Desorganização total. Observa uma traça correndo pelo chão. Vê uma mosca esvoaçante & uma barata num canto. Pequenos insetos, sujos & nojentos. Pensa que o Apocalipse está nos detalhes. Nos ácaros, nas bactérias.

Faz um corte longo e profundo na palma da mão. O sangue escorre abundantemente sobre as folhas manchadas de nanquim, enquanto ele pronuncia conjuros mágicos. O dia cinza escurece. Um eclipse sem sol nem lua nem astro nenhum. Um eclipse interno que se reflete nas nuvens plúmbeas. Espalha ervas sobre o sangue. O cheiro forte de coisa verde cortada/esmagada/estraçalhada.

Não precisa fazer muito sentido, pensou, só precisa acontecer. E acontecia. Acontecia tanta coisa em sua cabeça/coração/alma. Enquanto ao seu redor apenas as nuvens moviam-se. As nuvens & os insetos. Os homens assemelham-se muito mais aos insetos do que às nuvens, observou.

Nuvens, insetos, homens. Pequenos monstros internos. Percepções distorcidas, usando músicas & livros como drogas, alucinando-se, vendo o que não existe & alienando-se ao real.

O erro está basicamente em tentar ser humano. Ao livrar-se da “humanidade” inerente ao ser, abre-se à inúmeras possibilidades.

O sangue ainda pingava sobre as ervas & manchas de nanquim. O cheiro forte & verde. A fumaça do incenso. A penumbra do dia – quase noite – cinza. Brincava de controlar o seu destino. A traça tentou passar por sobre as folhas espalhadas ao chão. Ficou presa no sangue. Acabou por afogar-se. Ainda faltavam a mosca & a barata. Pegou a mosca no ar. Fechou-a dentro de sua mão ensangüentada. Sentiu suas asas batendo dentro de sua ferida aberta. Apertou mais. Esmagou-a. Deixou-a cair ao lado da traça. Ambas mortas, mergulhadas no sangue. No seu sangue. A barata passou por baixo da porta. Fugiu. Sempre há alguém que foge.

Todas as histórias de amor já foram escritas. Está entorpecido. Acho que o corte foi fundo demais, esboça pensar, mas o pensamento logo se dissolve, como todos, como tudo. Nada tem contornos fixos. Tudo é embaçado e logo se dissolve.

As lágrimas corriam pelo seu rosto, mas ele não sentia dor. As lágrimas eram uma espécie de redenção. Elas caíam sobre as folhas & misturavam-se ao sangue & às ervas & aos insetos mortos. Lágrimas & sangue como redenção. Estava tonto. Suas mãos & pés formigavam. Sentia um torpor & sua vista embaçava-se.

Pegou enfim a foice & cravou-a no peito. Rasgou o peito & a barriga com um puxão forte. Retirou os órgãos um a um & os dispôs em cima das folhas, do sangue & das ervas. Deixou o coração por último. Sua visão já escurecia-se. Pôs o coração bem no centro. & sorriu. Redenção! foi o último pensamento que passou por sua mente. & ele tombou ao lado das folhas, das ervas & do seu coração ainda pulsante.

& ficou feliz.

A barata entrou no quarto & alojou-se confortavelmente na sua caixa torácica, onde vive até hoje.

Quanto às folhas, ao sangue, às ervas & ao coração, eles cumpriram a sua função. As folhas foram escritas, o sangue foi derramado, as ervas foram colhidas & o coração bateu, o coração fez viver & fez morrer.

Não houve ninguém para perguntar o porquê, pois ele nunca foi encontrado, mas se houvesse, ele responderia da sua paz celestial: Foi por amor. Pois essa é a única e essencial função do amor: O amor mata.

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