domingo, 16 de março de 2008

Crônica de um dia ruim

Entrevista pra emprego, questionário, perguntas, perguntas e mais perguntas, nome, idade, filiação, partido político, estado civil, opção sexual, putz, opção sexual? mulheres, é, eu prefiro mulheres, pelo menos na maior parte do tempo, H-E-T-E-R-O-S-S-E-X-U-A-L, pra que tantas perguntas afinal? pra um emprego fixo, estabilidade-econômico-financeira, o sonho de consumo de noventa-e-nove-por-cento da população brasileira e mundial, empreguinho fodido de oito horas diárias, pra quem não tem um pingo de imaginação na cuca, mas com salário que dá pra viver, “faz concurso, meu filho, vai ser funcionário-público” já dizia a minha mãe, e o meu avô, e uma tia dessas meio desconhecidas, parente de longe, mas vai ser funcionário-público, estabilidade, ganha bem, com recesso e férias remuneradas, é só ficar lá quietinho fingindo que trabalha e fechar a boca, calar, sabe? bom salário pra ajudar o governo a roubar, mas calado, porque se abrir o boca, tchank! cortam tua cabeça, tu vira bode expiratório, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco” já dizia minha mãe ou meu avô ou aquela tia de longe, foda-se tudo isso, “quero paz mental, estabilidade” tenho que parar de surtar enlouquecer pirar, preciso desestressar, talvez uma semana de clima bucólico e ausência de poluição, talvez uma cama quente com duas pernas escancaradas, quem sabe? e por que não? vamos pra festa, tem cerveja barata, afinal estudante é criatura falida por natureza, aí quem sabe? por que não? nem precisa da cama quente, pode ser encostado na parede mesmo, ou no banheiro, vai dizer: uma foda alcoólica com uma estranha em um bar é bem melhor que um empreguinho-fodido-de-oito-horas-diárias, yeah, vamos pra festa, com uma banda qualquer que toque muitos Beatles e alguns Rolling Stones, vamos beber, vamos gritar, vamos dançar, depois, no caminho pra casa, a gente se joga em alguma folhagem na beira do asfalto, e fica lá, até aparecer alguém pra nos acordar, sabe, às vezes eu quase tenho aquilo, esperança, mas é só um vislumbre, “tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?” e se não passar ninguém a gente fica dormindo ali mesmo, esperando o amanhecer, olhando para a lâmpada de mercúrio de um poste através dos galhos e folhas, achando tudo aquilo muito lindo e muito confortável e muito quieto, hoje em dia nada é lindo e quieto e confortável, pelo menos não sóbrio, depois a gente passa dias ou meses ou anos de ressaca, daquela ressaca braba mesmo, dor de cabeça e estômago revirado, fígado fodido, pra que toda esta revolta? por que toda esta dor? no fundo, a vida é assim mesmo, levantar, escovar os dentes, passar café, tomar banho, sair correndo, quase sempre atrasado, agüentar as mesmas pessoas estúpidas com a sua mesma estupidez todo santo dia, voltar pra casa já noite alta, cansado, exausto, mais um dia perdido, mais uma noite perdida, mais uma vida perdida, mas a gente continua, “é assim que tem que ser” alguém disse alguma vez, e a gente segue acreditando, acreditando cego e sem questionar, pois é assim que tem que ser, “rotina após rotina”, sempre aquelas pequenas hipocrisias diárias, mas que se há de fazer que se há de fazer, dizemos com a voz rouca de cigarros e vodka, de decepções e desilusões, e aí o que fica pra nós? o que é que fica lá dentro? lá no fundo? algo que valha a pena? ou só essa poeira suja e seca de sempre, na garganta, no coração, na alma, a poeira, é tão difícil, é tudo tão difícil, tão doído, esse viver, esse colocar um pé na frente do outro, esse escrever uma palavra depois da outra, e todos os meus fantasmas, passados e futuros, a me atormentar continuamente, e eu aqui, vazio no meio desse vazio, sozinho no meio dessa solidão, e eu aqui, sem você, sem ninguém, me despedaçando em traços de nanquim, eu aqui, querendo fugir sem poder, e você sei lá onde, longe, você que por fim também fugiu, assim como todos, eu te disse, lembra? eu te disse que chega um ponto em que as pessoas começam a me conhecer mais profundamente, chega uma profundidade em que elas começam a ver tudo o que há de escuro e podre no fundo desse poço sem fundo que sou eu, eu te disse, mas tu dissestes que tu era diferente, que tu também tinha um fundo sem fundo escuro e podre, e que tu não ia fugir, e eu acreditei em ti, e te permiti ir mais fundo que as outras pessoas, mas aí tu viu, e fugiu, ou será que fui eu que te vi, e fugi? nos vimos, escuros e podres, e fugimos um do outro como se estivéssemos fugindo de nós mesmos, e agora eu estou aqui de novo, vazio e solitário, e tu eu não sei por onde anda, mas como eu te disse, eu também queria fugir pra bem longe, pra bem longe de mim mesmo, sabe, tudo o que eu mais queria agora era desistir de ti, assim como tu desistiu de mim, se é que alguma vez tu me quis bem de verdade, se é que alguma vez tu me quis contigo de verdade, tudo o que eu mais queria agora era desistir de ti, mas o meu maldito coração burro e sangrando não obedece às minhas vontades, rasgado & dilacerado ele continua pulsando por ti, que o despreza com tanta delicadeza, como eu amo a tua delicadeza, como eu odeio o teu desprezo, assim eu permaneço sempre, te amando e te odiando, e tu, indiferente, me afasta com um sorriso, me joga no abismo com uma palavra carinhosa, que monstruosidade se esconde por trás desse rosto sereno, que fúria é esta, vermelha como os teus cabelos, que tu dispara contra mim com extrema passividade, serena, quase como uma religiosidade, daquelas religiosidades que sufocam, que matam, a ti e a mim, mortos pela tua religiosidade, pela tua serenidade, eu só queria quê, que tanta coisa meu Deus, que houvesse amor entre nós, colorido, sem máscaras, sem serenidade e com loucura, eu queria tanto... eu queria que tu fosse minha.

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